O SONGAMONGA
20 de Janeiro de 2003
Ela olhou a foto jogada em cima da mesa e
escolheu: “quem é esse, dê-me seu telefone”. Mas ele é alemão e não mora
aqui, esclareceram. Num domingo chuvoso e propício, acertaram os
primeiros detalhes. Traçou uma linha reta entre Berlim e Rio de Janeiro
e o dedo parou em Paris, para a avant-première da lua-de-mel. Seus
sogros logo aprovaram a deportação de seu filhinho de 58 anos, o barco
encalhara de há muito, as netas votaram a favor do degredo do pai. Tudo
sem a sortuda da noiva tomar conhecimento.
Eu disse noiva? Uma pinóia, correria a versão na
Cidade Maravilhosa de uma experiência conjugal com prazo de carência,
morar juntos apenas uma necessidade de baixar custos. Precisariam se
conhecer melhor, se o sexo seria feito na poltrona herdada da bisavó ou
por sobre o tapete de rolhas produzido em série pelo alternativo Alemão.
Todavia, ela já havia vencido o inferno das
paixões, pensava Jung, “quanto mais predomina a razão crítica, mais a
vida se empobrece”, fazendo uso da criatividade do brasileiro típica em
deturpar princípios a serviço do gozo do prazer de sua ética. Fez correr
os proclamas, naturalização em curso, casamento em cartório, adeus à
vida hippie, e os sogros resolveram dar uma força aderindo também a
Jung, “quanto menos os pais aceitem seus próprios problemas, tanto mais
os filhos sofrerão pela vida não vivida de seus pais".
Uma interpretação conveniente de quem pretendia
tirar proveito e encobrir o avoado do Alemão, perdido em sua identidade
de não conseguir realizar nunca suas tarefas comezinhas quanto mais
enxergar fim nos seus propósitos. Um ser indefeso e confuso necessitante
de tutor, senão à deriva permaneceria, cujo grau de comprometimento com
a realidade do relógio carece de teleguiar-se. O dia seguinte é o seu
maior desafio, posto que hoje é melhor pitar um cigarro, metido em um
calção bem largo, de pés descalços em contato com nossos antepassados
silvícolas, a curtir uma cachaça e discutir a importância do eneagrama.
Sistema que permite mapear com segurança os
tipos psicológicos básicos do ser humano na boa intenção de nos trazer
um sopro de felicidade ao desvincularmos de estratégias que nos limitam
no relacionamento com o mundo e com as pessoas, gerando atitudes
mecânicas e repetitivas.
Mas o eneagrama não solucionou o dote acordado
por conta de sua remoção para a capitania do apartamento de sua agora
esposa. Esfumaçou-se no trajeto através de saqueadores de destinos,
primos dos duendes, que vivem da prática do estelionato de sonhos e
alicerçam álibis promissores como o do Alemão a enganar a noivinha de
Copacabana, a princesinha dos mares.
Pensam que ela se abalou? Na-na-ni-na-não! Tinha
mais peito que o natural, embora, por vezes, fosse acometida de surtos
de escurecimento da pele à la Tim Maia, a sinalizar que o tempo irá
fechar. Ao se intitular como Sara, imitava abusivamente o modo de falar
judaico, exaltando sua capacidade de negociar, de comprar o que for
necessário para se inserir no que a normalidade tem de mais medíocre.
O Alemão achou um sapato velho para acomodar
seus pés cansados de anos de beira de estrada, se tornou o abrigo seguro
em que uma mulher pudesse depositar todos os seus sonhos de encontrar um
marido, construir um lar e, se desse sorte, ter um herdeiro bonito e
louro.
Disfarça o zero à esquerda na preguiça, se faz
de zumbi como um gato que não mia e percorre os recantos da casa sem que
ninguém se aperceba, cara, o alemão é um songamonga! Por conveniência.
Quando a situação é favorável, se mostra sonso, bonzinho, cordato,
enquanto por trás dá vazão ao vampiro que ataca de dia. Acautele-te com
seu perfil erecto, sempre pronto para o bote da cobra, e engolir o boi.
Leva vantagem sobre o escorpiano, que pica mortalmente desconhecendo o
terreno que pisa, sendo vítima de seu próprio veneno.
O que alimenta as especulações sobre traição no
songamonga, mas ele é apenas um pinto molhado na chuva, de inspirar
pena, não vai dar boa canja! Como todo bom alemão filosofa, a cultura
perpassa pelos inúmeros arremates e dobras de sua personalidade, saca de
seu inconsciente coletivo Beethoven, Marx, Nietzsche e Hitler, para
ensaiar um protótipo de homem que não traia, não judie e não destrua
amores castos e amigos irmãos. Vã filosofia.
Nem que ela tivesse que tocar a boiada sozinha,
aos 45 anos, ainda sim valeria o sacrifício. Amor e paixão num mesmo
homem poriam mais fé nesse coração que sempre se nutriu de ardis com sua
voz em falsete. Denotada pelo queixo, que, nesse instante, se alonga
como o nariz do Pinóquio, tornando o rosto uma caricatura.
Agora ela podia descansar em paz, e chegar em
casa com o pão quente da padaria e queijo fresco, teria um companheiro,
à sua altura e à sua espera, para abrir a porta!