O BON-VIVANT
02 de Junho de 2003
O bon-vivant é o indivíduo que nasceu para
viver bem-humorado, folgazão e espirituoso a valorizar os prazeres da vida,
e gozá-los. O uso ilimitado do prazer desperta inveja, pois brinca sem olhar
para o relógio em obscuras cavernas por onde se mete na busca de sensações
nunca antes desfrutadas. Os desprovidos de criatividade e talento julgam o
bon-vivant como um mero parasita que tira proveito de situações ou
circunstâncias de modo pouco escrupuloso, podendo evoluir para explorador.
Repare que a mulher não faz jus ao título de
bon-vivant. O machismo vigente apenas circunscreve ao homem o gozo
desse deleite. Posto que ele se entrega aos prazeres mundanos e se
dá o direito de viver como bem entender, com rara desenvoltura,
pouco se importando com o que vão pensar. Um trânsito livre e solto
que obrigaria a mulher pensar duas vezes se, leve e fagueira, desse
vazão aos seus impulsos preferidos. A imagem pesa como uma cruz.
O bon-vivant não quer saber de ter filhos,
procura criar e fortalecer nichos, na espreita de mulheres que se
preparam para arpoá-lo. Seu intelecto o torna atraente para mocinhas
sonhadoras, que alimentam a ilusão de dar um fim a esse homem das
cavernas que estabelece reservas, demarca terrenos e não se entrega
com facilidade.
Cultiva uma grande admiração por Sartre. Uma
relação a dois, em termos de liberdade e transparência, inspira-se
na distinção entre verdade necessária e verdade contingente. Segundo
ele, sua relação com Simone de Beauvoir seria necessária, ao passo
que os romances com outras mulheres seriam contingentes. O pacto
relacional incluía lealdade absoluta de um para com o outro:
contariam tudo o que lhes acontecesse, inclusive os casos
contingentes. Esta modalidade de relacionamento na Europa dos anos
20, no século passado, foi motivo de escândalo pela audácia, pois
Simone e Sartre arrombaram as portas da privacidade, se constituindo
num exemplo para intelectuais das décadas seguintes.
Com a evolução da mulher, o bon-vivant teve que
acompanhar a marcha dos tempos, senão perderia a sagacidade que lhe
é peculiar. Passou a se utilizar do recurso de encher o bucho de
cada mulher jovem com quem se casa para se assegurar de que ela não
o trairá. Envolvida com a maternidade, habitualmente, o coração
amolece.
Procura se mostrar, agora, um sujeito sério e
cônscio de suas responsabilidades, o escárnio de fracassados ao
persegui-lo pela alcunha de “comedor de gente”, pesa na balança.
Contudo, o efeito pensão em cascata não o preocupa, enquanto gozar
de boa situação financeira, jura não manchar seu nobre caráter;
esvaziada a burra, perdulário já foi e a má fama fica por conta do
bafo comprido.
A figura do bon-vivant como lorde ou playboy
está em extinção, mas não como artista, no sentido mais ambíguo que
a arte nos enleva. Amarra o burro à vontade de mulheres que perfazem
a metade de sua idade para rejuvenescer, renovar e renascê-lo,
criando seus netos, ou melhor, filhos, aos quais empresta menor
rigor e maior compreensão. Enquanto elas mandam e adquirem
experiência bancadas por eles.
Concebe suas contemporâneas como neuróticas,
amargas, necessitando parecer modernas permanecendo tão antigas
ainda, complicadas para construir um futuro promissor. Um corpo
durinho e bem-acabado, o mínimo que se pede, exceção honrosa ao
dele. Sobretudo na plenitude material em que se encontra, a
maturidade aflora. Uma maldade se o brilho de sua inteligência não
puder ser compartilhado, o mundo perderia!
Quando o bon-vivant abandona o amadorismo de
filosofar sobre relacionamento com pitadas de sexo, maquiaveliza-se
e perde a graça de um garoto que não cresceu, de um menino que
aprecia ser bem cuidado e querido. E se transforma numa raposa atrás
de suas galinhas sem se dar conta que não é mais o galo a cantar em
seu terreiro.