RELACIONAMENTO DE
TRANSIÇÃO
09 de Fevereiro de 2004
O homem acredita que relacionamentos de
transição apagam o fracasso do anterior, dentro do espírito de que
nada como um novo amor para mandar o antigo para o espaço. Com o
intuito de esquecer as mágoas que restaram de uma paixão que
consumiu suas entranhas e o tirou do sério, descontrolando-o a ponto
de não mais ser dono de si. A mulher serviria de psicanalista e
conselheira, ouvinte privilegiada que funcionaria como amiga-homem e
que não se manteria nos limites estritos do bar.
Como um autêntico gentleman, jamais fecha as portas para que
ela alimente as esperanças de conquistá-lo, além de socialmente
aparecer como muito bem acompanhado. Faz-se de desentendido para que
ela crie coragem e ocupe o espaço da mal-agradecida que destruiu seu
coração. Sob condição.
A generosidade é encarada com muita desconfiança
pelo homem. Ao receber de bom grado, esmola demais santo desconfia.
Preocupa quando a mulher lhe serve na bandeja. Tanto mimo implica
numa exigência de troca. Na gratidão em reconhecer que ela está
presente em sua vida, um regalo.
Como ser grato, se o tritura a angústia da implausibilidade da
posse. Abolida tal escravatura, poderia amar mais de uma mulher, sem
maiores conseqüências.
Tal princípio ancião ainda remanesce nos estertores do homem.
Necessitará de anos consumidos a ferro e fogo para que a mulher
diminua sua angústia face ao maniqueísmo ainda corrente de pôr peias
sobre o amor - o verdadeiro -, aquele que arrebata e não nos deixa
dormir sossegados. No qual o homem ainda procura fazer valer sua
autoridade, enquanto a mulher se curva. Foram séculos de
conquistador e dominador sobre a escolhida para dobrá-la perante o
casamento arranjado.
Na medida em que se reforma o homem e se aposenta a figura do
pai como provedor, cresce o número de famílias compostas por
mulheres independentes que, por opção ou necessidade, criam os
filhos sozinhas. O resultado da entrada maciça das mulheres no
mercado de trabalho, competindo em combate corpo-a-corpo, dá uma
exata noção da guerra que atravessa o samba dos relacionamentos,
tendo em vista a secular autoridade patriarcal não mais caber em
nome de relações mais democráticas, transparentes e felizes.
Queimando o filme do homem ao se denunciar desmandos e cascatas que
equivalem a inúmeras outras prestações de contas que a sociedade
expia em relação aos negros, índios, homossexuais, etnias, e
maiorias que se tornaram minorias fruto da opressão.
Resultando na descoberta e assunção da porção masculina e
feminina que existe no nosso campo de sensibilidade. Tema que
mereceu chacotas de enrustidos, afinal de contas, admitir que o
feminino não é exclusivo das mulheres nem o masculino dos homens não
passa pela goela de mentes estreitas que lutam deslealmente em
silêncio para manter o status quo nas mesmas condições de
temperatura e pressão do Velho e Novo Testamento.
É muito mais fácil para essa camarilha de homens viver sob
restrições, de alguma forma se alivia a frustração em cima de um
pobre coitado qualquer. Contudo, lidar com depressão que gera câncer
em epidemia, só torna claro que o vírus sinaliza quão difícil é se
libertar de si mesmo. Trocar de pele, abaixar a poeira do ego,
romper as couraças, despir-se da amargura, por trás do cinismo o
amargor reina e o coração endurece. Quão penoso é ter acesso ao
desejo desse homem e estabelecer uma relação com o mais reprimido
dos seus complexos: o afetivo. Confundem desejo com culto ao corpo,
cirurgia plástica e a exigência do prazer imediato, por ser moderno.
Cultivam o medo do inconsciente, desconhecendo o ato falho, à mercê
de determinadas forças estranhas ao ninho.
De que adianta remover tabus que caracterizavam a moralidade
tacanha de nossos avós, se não sabemos fazer uso da liberdade? O
pavor que o homem tem pelo fracasso.