O ESPETÁCULO GAY
16 de Fevereiro de 2004
Os gays avançam irreversivelmente sobre os
domínios heteros e viram uma surpreendente página diante da
sociedade que teima em não legitimar sua união e adoção de filhos. À
intransigência, o fato consumado esbofeteia os apologistas da
tradicional família, que vai mal, obrigado. E tapa de gay não dói,
humilha. Por expor perante olhos que não querem enxergar casais se
formando sem os cacoetes impostos pela tradição, família e
propriedade. O modelo exemplar a ser transmitido para os herdeiros.
Restando o campo moral e ético onde todos são todos e não chegam a
somar, pois cada um livre-arbitra sua quitanda, sua horta, bar,
cozinha e dormitório que formam os princípios de seu lar.
Não sujeitos aos ditames cobrados às famílias heteros, praticam
com muita alegria um amor a descoberto de causar inveja a veteranos
que dão trotes em calouros. O que faz os homens heteros pensarem com
seus botões: de onde vem toda essa alegria?
O epicentro do terremoto gay está deixando para
trás São Francisco e se deslocando para o Rio de Janeiro, atraindo
ingleses e alemães, à frente no tempo e no espaço político, ao se
assumirem. Praias e tempo ensolarado o ano todo correspondem a um
oásis no deserto de idéias que vigora no planeta. O culto ao corpo
enaltecido na Cidade Maravilhosa tem como alvo certo a sensualidade,
podendo operar o milagre de transformar o feio no bonito. E quando
se é feliz, se gasta mais, se materializa o prazer sem medir
conseqüências, pois não precisam pensar em filhos nem netos, ou
sustentar uma patroa que vagabundeie sem trabalhar ou uma amante que
custe os olhos da cara.
Em se tratando de ser humano, ainda mais gay, o que há de mais
importante é a aceitação. Compreensão seria pedir demais. Agora,
encontrar uma receptividade que dê vazão à sua capacidade de amar,
onde o sorriso estampa sua felicidade, que varreu a depressão
originada na perseguição, aí é o paraíso. Desbancaram a fama da
garota de Ipanema, colocando em foco a beleza masculina e matando de
inveja as mulheres por não poderem aproveitar tanto pedaço de mau
caminho.
Uma estética gay de se relacionar intimida homens e mulheres
que se declaram normais. Quando Viagra bate recordes de vendagem a
título de recuperar a potência e salvar casamentos do espetáculo do
fim anunciado. Enquanto mulheres entram em pânico diante da retirada
em desabalada correria das hostes machas, auto-indagando-se onde foi
que erraram.
Se a traição sempre foi um leão deitado na cama do casal, uma
erva daninha que apodrecia os frutos da árvore do amor, como podem
os gays andar em bandos, soltando fagulhas de prazer, e não se
deprimirem com a posse? A segunda instituição mais antiga do mundo
depois da prostituição.
Orgia, calígulas reencarnados filosofam ejaculando. A ser
verdade, é o que romeus e julietas mais desejam entre quatro
paredes. Só a inveja para desviar o rio e discriminar os convictos
dos não-convictos em margens opostas. Mas se é o prazer de admirar
aquela criatura ao seu lado e cumulá-la de beijos o que nos reúne no
mesmo conjunto, por que se deixar invadir pela tristeza,
ressentimento e desdém de uma paixão com os canais trocados? Por que
não fazer tal julgamento diante de um espelho que refletirá seus
atos, suas raivas, impulsos, tendências, preferências irretorquíveis
e reatividade? A memória é fraca, mas o espelho ajudará a
reconstituir sua obra arquitetada em torno de seu sexo.
Orgulhosamente, os gays alardeiam que cruzaram o rio turbulento
da existência para encontrar paz de espírito consigo mesmos. Quando
a maioria sobe e desce ao longo do rio, permanecendo na mesma
margem. Deixaram para trás o obscurantismo, abandonaram seu lar e
foram em direção a uma vida de liberdade. Os primeiros se
defrontaram com a solidão. Os seguintes, a alegria suprema, ao se
libertarem de qualquer entrave que possa turvar a mente.
Gays, dispersos e disfarçados, rumo a um senso de unidade
dentro de si e com o universo. Heteros, em dispersão de proles,
clãs, patriarcados, heranças, do bom nome. De avalizar a vocação da
família e da genética.