O DEGENERADO
29 de Março de 2004
O degenerado anda pelas praias sob o pino
do sol escaldante que parte o dia ao meio, espiando o vaivém da
bola na rede de vôlei. Cospe constantemente a gosma de sua
essência, desconsolado por não poder mais arrebentar o
adversário através de uma cortada que amarrotasse a sua cara.
Sua verdadeira praia era a área de inteligência das Forças
Armadas, se não fosse a lata de goiaba em calda com que saciava
a fome assassina. Com a mesma afoiteza, puxou o pino da granada
em um exercício de guerra e perdeu a mão. Pensava na morte da
bezerra, nostálgico de ditaduras, para caçar políticos corruptos
que maculam a brasilidade do país e estancar o corrimento da
vagina da Pátria-mãe, por onde vazam valores morais que
constroem nossa identidade.
Na categoria de inválido, cassaram-lhe a voz de
comando, transformando em cinzas todos os atributos de poder,
sem o que não vale a pena viver. Desmoralizado, resolveu
enveredar pelo mundo sadomasoquista, admitindo a contragosto que
o prazer extraído do exercício de sua moral e autoridade perdeu
o leme. Deixou o barco correr, pois nunca foi macho sequer para
encarar sua mãe, que o mantinha no cabresto.
O depravado só atira pelas costas. Infunde temor pelo seu
pensamento frio e calculista, torturando mentes necessitadas de
abrir-se para alguém e expor os sentimentos. Atrai anjos em
pleno processo de abastardamento, que se aproximam
sorrateiramente reclamando de não terem sido tiradas para
dançar, ao apagar das luzes da noitada. Que reacendem o seu
desejo babando o contorno de sua boca, sem usar a língua,
desprendendo um travo de virgindade na saliva.
Natural redobrar a lista de exigências ao encargo da mulher.
Sem esboçar reação e interagir, o gozo não pode ser alcançado
enquanto as messalinas não cuspirem na sua cara, esbofetearem-no
e o arranharem até a carne viva.
Exploram-nas, despudoradamente, por elas não saberem dizer não
e jamais arredarem do gênero de vida que escolheram, avessas a
casamentos com papéis definidos. Filhos, se vierem, terão de se
encaixar no hospício em construção. Infligem maus-tratos a quem
ousar moldá-los segundo suas conveniências.
Constam do seu seleto cardápio filmes de perseguição
implacável, tiro ao alvo, músicas de dor-de-cotovelo e sexo
pelas manhãs, quando irrompe a ereção que afaga o ego de
qualquer homem. Tal como a bolsa que contém o testículo, escroto
é o ser humano que despreza gestos de generosidade e entrega
incondicional. Preferem o voyeurismo de espiar casais com
binóculo da janela do apartamento, transfigurados no comer o
parceiro, a observar a candura do anjo lavando a louça e cuecas
sujas.
Mantêm oculto o sonho de consumo: travestis. Também, como
admitir atração por um sexo que não é frágil? Se, à menor
provocação, não se decidem entre surrar ou cobri-los de beijos
num abraço de tamanduá. Além do que não cabe brincar com coisa
séria e cair na gandaia. Nem se enredar na estupefação de, em
sendo homens, como conseguem ser mais mulheres do que as
próprias?
Mas anjos também sentem dor na coluna, com o tempo as asas
começam a pesar. Transformam seu cabelo de mãe-de-santo em
capacetes no estilo hominídeo. Se cansam do papel de atoladas e
lesas. Resolvem se fingir de mortas, desaparecendo pé ante pé. O
degenerado custa a dar o braço a torcer, a sensação é de
condenado à morte e o anjo a última graça concedida. Para fazer
o bem e soprar as ardências das feridas que não se cicatrizam.
Mesmo à mercê de seu prazer, não o satisfazia, face à descomunal
fome de querer submetê-la segundo seu arbítrio. Para provar que
ela é sua e de mais ninguém.
Dá início à ronda, urdida às escondidas dos amigos, para que se
preserve a integridade de seu orgulho. Flagra mulheres na dança
da noite, anjos de caráter libertino. Nos braços de qualquer um
que levanta a dama, com o joelho enfiado por entre as pernas, e
descobre recantos mais profundos que outros ainda não aportaram.
Troveja a ária de uma ópera que lastima a traição e exige
respeito com sua esposa, há que preservar a integridade da
família. Santo Antonio, misericordioso, devolve-lhe a mão
mutilada, em caráter provisório, apenas para vibrar tapa-ouvidos
em aproveitadores infiltrados e cortar seu rebolado. O clube da
luta pede calma e sai de fininho. Para rir lá fora do último
otário convertido à causa dos bons costumes.
O caminho dos fracos é se isolar em guetos, necessitados de
solidariedade, a implorar clemência, arrependidos de seu trajeto
sórdido. O degenerado aperta o passo ao se sentir enjaulado e dá
sua notável colaboração para o câncer de pulmão, ao fumar quatro
maços de cigarros por dia. Mas não se livra da mente,
anestesiada por entorpecentes que lhe garantem uma sobrevida ao
corpo, desde que consiga se abstrair dos pesadelos. As pálpebras
não se sustentam, denunciam sua falta de apetite e o retrato
vivo de vítima do holocausto existencial.
O degenerado fala sozinho. Com chapéu de Van Gogh enfiado na
cabeça, se lembra do seu aniversário. O estado adiantado de
visão estrábica levou-o a estacionar sobre as previsões do ano
nascente que, em letras garrafais, anunciam a libertação de
escravas do amor. Não mais serão forçadas a dizer sim.
- Quem elas pensam que são? Como é que podem fazer uma coisa
dessas comigo?
Num quadro de insuficiência respiratória, o degenerado desmaia.
Enquanto tentam reanimá-lo, clínicos, psiquiatras e enfermeiras
decidem, em acalorada roda de debates, encaminhá-lo logo ao
Jardim Botânico. Do exame constatou-se a mudança de forma para
algo deteriorado. A passagem de um estado natural a outro,
decaído. Consideraram-no definhado, tal como a lasca da árvore
que se desprende do tronco. Murcha, resseca e morre.
Converteu-se em fonte de matéria orgânica. Finalmente, fez por
merecer um lugar na Terra, quando, na qualidade de húmus, deu
vida a plantas que nasceram e floresceram.