O ÍNDIO
21 de Abril de 2004
Que tal você acordar nua, ao lado de com
quem dançou a noite inteira, seu tipo inesquecível desde que começou
a menstruar, e dar de cara com outro homem? Aquele que te arrancou
lá do outro lado da lua e te jogou no inferno astral de ver sonhos
se consumirem no fogo que alimenta paixões. Ver derrubado o ninho do
amor que a deixava confortável, nascido de sua cria na imaginação. O
homem que tanto idealizou. Enquanto ela não o conheceu, o imaginou
do jeito que conviesse às suas necessidades e anseios, desenvolvendo
ao máximo seu potencial em fantasias, em face da realidade não ter
batido à porta e confrontá-la com o sapo que só coaxa à noite,
quando todos os gatos são pardos.
Esse homem, embalado pelo sono dos deuses, deitou no seu
passado. Mitificado, às custas da imagem de um índio, com seus
cabelos longos e lisos, de tez morena, trançado por faixas adornando
o jeans rasgado, parecendo estar no palco o tempo todo. Nos seus
melhores tempos, atirava em dez para alcançar uma, falta de critério
apenas do conhecimento dos homens. Tese não abraçada por elas, se
estava sempre bem-acompanhado é porque era um homem gostoso.
O bom comedor ofende apenas o politicamente
correto, o desejo exige clareza na expressão. Explora a repressão de
mulheres que vacilam. Em sua fase mais crônica, acorda tomando
cerveja e necessita de uma doméstica para pôr ordem na casa, pois
sua esposa o expulsou por maus costumes. Entre uma espanada e um
cafezinho, tenta colonizá-la inspirado em Karl Marx, que, ao
proletarizar o amor, escreveu “O Capital” e celebrizou o comunismo.
Trata-se de um homem sensível, sem ser gay, a cobrança eterna
dos homofóbicos. O hippie índio é um folclore da realidade, para que
a tradição represente a vanguarda. Apegou-se ao modelo. E acreditou
ser um deus caboclo. Um feio bonito. De olhar esbugalhado em noites
queimadas na insônia, observando o cosmos.
“Você é uma das maravilhosas mulheres que fizeram parte da
minha vida”, consta do seu repertório. Por que distanciar tanto
assim as mulheres? Compensando-as com a sua importância. Lançando-as
em parcerias itinerantes e intermitentes, que resultam em não ter
nada nas mãos, quando teriam o cosmos por dividir. O que o
atemoriza, pois entende como feitiçaria de um espírito livre que
quer se libertar e precisa se alimentar do amor.
Hoje o índio virou um homem comum, com horror do passado que
construiu. De não se cansar de seduzir. Reclama da filha que não o
curte, “esse homem que eu fui”. Confessa não mais dividir sua cama
de solteiro com nenhuma mulher fixa, o sexo foi abduzido, o vício do
reafirmar-se na conquista e gozar as mulheres sempre dispostas a se
oferecerem para ele.
Não caiu no desespero, procura reparar os estragos elaborados
com o requinte de um artista. E ego é do que o artista se alimenta.
Para repetir cada vez mais e mais, mecanicamente, o seu modelo. E
acabar nos braços de uma nativa, ao longo de uma noite de seja qual
for a lua, para amenizar a solidão transitando pelas praias de
Caraíva, onde a Bahia atesta sua verdadeira fama. E serve como
refúgio para o alternativo dispor sua inteligência de psicólogo a
serviço de projetos de cidadania mixados à arte indígena. Um
mini-universo onde pudesse ser mais valorizado.
Um cemitério de elefantes. Um retorno à natureza para que ela o
acolha e lamba suas feridas. O apego ao desejo remeteu-o à solidão.
Impediu-a de abrir a boca sobre seus amores, iria se comparar,
irremediavelmente, e não suportaria. E a nativa sacou que não ia
mais rolar com sua experiência ancestral indígena. Antes dele, que
caminha a passos de cágado. E procurou evitar qualquer iniciativa
desavisada para não constranger, fazendo-o suspirar de alívio. O que
o encorajou a pedir-lhe que levasse embora suas angústias para os
mares de Curuípe e Corumbau.
O índio torna a mulher especial no distanciamento, não na
presença, no dia-a-dia, e a leva a chorar no café da manhã,
compulsivamente, por ver o mito no fundo do poço e a se mirar no
espelho como sua sombra. O espectro de amores idealizados que
minguam no rastro do desejo de ser muito amada e querida, de “se
você quiser me domar, me ame como a um animal”. Mas o índio não
banca nem relação animal, por enxergar nela uma atraente
conseqüência perigosa de que não daria conta.
O índio disfarça a vida inteira à cata de um relacionamento sem
formato, mas, de fato, desfigura o seu caráter. Rejeita a mulher,
ignora sua missão de agregar. Seu cinismo conjuga reconhecer ter
sido um canalha e agora não querer ser mais. Se benze todos os dias
por ainda estar vivo, graças à proteção dos orixás.