ENCANTADORES DE
SERPENTES
31 de Maio de 2004
O homem ainda não conseguiu se desvincular
de uma visão nostálgica e simplória à feição do sexo frágil, o
estereótipo da mulher engraçadinha, cheirosinha e comedidamente
sensual, encantada com seu príncipe, protegida em seu abraço urso, a
corresponder-lhe com um beijo terno e doce. A buscar conciliação e
evitar confrontos desnecessários com a personalidade maravilhosa com
que todos os homens já nascem. E jamais colocarem em xeque o
extraordinário saber deles, pois é melhor que se encaixem num
contexto de mundo que o homem pensa, entende e projeta. Caso
contrário, que ela vá procurar outro à sua altura! É uma visão
antiquada que teima em não desaparecer, na exaltação à princesinha.
A síndrome de Grace Kelly. Que, por sinal, teve seu conto de
fadas interrompido num acidente de carro nas curvas das estradas de
Mônaco, na mesma velocidade em que dirigia numa seqüência de “Ladrão
de Casaca”. Nem quando a vida imita a arte, eles conseguem esquecer
da bonequinha de luxo. Condescendente, acha que vale a pena esperar
por horas a fio ela se vestir, reforçando o preconceito de que
mulher não tem pontualidade e só pensa em se embonecar. Pior que
isso só o prazer em ouvir um recado deixado por ela na secretária
eletrônica após uma discussão, implorando pelo fim das brigas. O
medo de perdê-lo leva ao arrependimento, no desespero faz-se
qualquer negócio.
Atire a primeira pedra e serão os primeiros a
depreciar essas donzelas no instante em que o fastio se instalar na
mente deprê dos encantadores de serpentes. Inicialmente, seus olhos
procuram dardejar a vítima com raios de luz oriundos de seu carisma
que a cegam, hipnotizando-a. De antemão, captam seu interesse
desprovido dos mínimos cuidados com gatunos e sua carência, às vezes
cármica, de tão longe que vem a dor - de outras vidas, ora. Ela
culmina por vacilar, entregar o ouro, dar mole, mesmo sabendo que o
preço a ser pago será alto. Mas valerá a pena, e disso ele está
absolutamente seguro. Ela não poderá passar a vida em branco sem
entrar em contato com a sensação paradisíaca de encontrar um homem
que a ponha nas nuvens, pouco importa se a verdade de um é a mentira
do outro.
Houve um tempo em que reinava imponente o dogma de que só se
ama uma vez na vida. Não se admitia falhas no que se acreditava raro
e transcendental. Ele irá explorar a fatalidade que acompanha a
evolução dessa espécie, apostando que ela não desvencilhará de uma
cadeia de pares amorosos cujo fim será idêntico ao palhaço que ri
para não chorar.
O encantador de serpentes sempre cantará a mesma música. Dá
resultado. Daquele balaio ela emergirá sedenta do domínio e controle
que ele exerce sobre sua vontade. Uma tirania que procura amenizar
com o interesse desusado pelo seu percurso, enquanto filha, neta,
adolescente, estudante, a sua escolha profissional, e os
desequilíbrios, ressentimentos, queixas e fracassos, o
amadurecimento. Mostra-se disponível para atendê-la, do outro lado
do balcão. Para catalogá-la, agendá-la e inseri-la no rol de suas
esperanças. Por sinal, esmaecidas. Nada que uma boa máscara não
resolva, com pitadas de sinceridade em busca de um tempo perdido,
entremeadas com o humor indispensável, próprio do mestre de
cerimônias. Natural para quem foge da exclusividade afetiva e requer
platéia para dançar no picadeiro o forró das ilusões. Seguro morreu
de velho, caso a vítima se aperceba do embuste, vale seu espírito de
organização e previdência.
O encantador de serpentes é extremamente benquisto na
sociedade. Aqueles que não possuem o mesmo talento pegam carona,
enquanto seus iguais se regozijam com o sucesso alcançado. Os que
torcem o nariz pedem licença e se retiram, mal disfarçando o
embrulho no estômago. Se juntarão à turma dos que não tiram o pijama
por não suportarem o homem que encanta e se confunde com a serpente.
Desconhecendo que não picam, sequer destilam o veneno que imortaliza
o amor, porquanto pagãos, imunes a qualquer crença que embeveça e os
enquadre como românticos inveterados e ultrapassados. Preferem a
malícia esperta a bancar o pato.
Sob protestos de mulheres descabeladas com esses manipuladores
que sabotam a essência do encanto - se nada mais houver na vida que,
pelo menos, reste o encanto. Não agüentam mais a posição dúbia de
serpente, ora encantada, ora réptil. Adeptas do fanatismo da
espontaneidade, gostariam de defender a reforma da natureza dos
encantadores de serpente. Seria como pendurar as uvas no galho mais
alto e descer as jacas para o plano rasteiro. Cadê coragem para
mexer num dogma do tope do reprodutor? Foi o homem que criou essa
sociedade de consumo, mas quer distância de uma democracia que irá
descartá-lo.