O ESCORREGADIO
19 de Julho de 2004
Um dos maiores truques do homem para uma
relação não se consolidar é brigar à toa. Ou exagerar no tom de
aborrecimento. A fim de conseguir tempo e espaço para sair atrás de
outras, cheio de razão, com a famosa linha de argumentação para
reforçar o álibi: “a gente está dando um tempo”, ou “nós estamos
estremecidos”, ou “a gente tinha quase que terminado” ou “só não me
separo por causa das crianças, mas a gente não tem mais nada”. E
simplesmente arrumar mais uma namorada em caráter fixo, tendo ainda
a cara-de-pau de exigir exclusividade.
O ideal é quando a mulher ainda fica atrás, pedindo uma
definição da situação, achando que, se for a eleita, está sendo
homenageada. O malabarista argumenta com meias-verdades, lembrando
que a alertou desde o início quanto à sua condição. Divertindo-se
com o absurdo dela reclamar de atenções, mimos e presentes
dispensados à mulher oficial.
O que mais irrita a mulher num homem é a sua
absoluta falta de transparência. Quando responde com frases curtas e
desconversa. Um livro difícil de ler porque não deixa pistas para
chegar ao âmago de sua questão. No máximo libera algumas páginas
sobre sua evolução profissional, sucessos e contramarchas que se
renovam com projetos, as disputas em torno que teve de enfrentar.
Falar de si, no entanto, é como interpretar a África, um elo perdido
equivalente a devassar seu universo íntimo.
O escorregadio, o tipo. Um trem que vai das sensações aos
medos, com duas paradas nas fantasias e desejos. Disposto a alcançar
o destino através de curvas sinuosas, a encarar aclives porque
devagar se vai ao longe, a uma velocidade cruzeiro de modo a se
poder apreciar a paisagem com o cuidado que ela merece. Parando
sempre que for necessário para reabastecer. Com o freio nas mãos,
alerta ao menor sinal de desembestar. Uma pergunta que não quer
calar, se não soasse o apito para que ela entre a bordo e seja dada
a partida.
Usa de lógica para abrir suas sensações, procurando encadeá-las
com início, meio e fim. Com umas pitadas de sinceridade onde não
tiver nada a perder ou pôr em risco. Contar uma história que a
envolva e a deixe à mercê de suas próprias opções, parecendo
desinteressado a ponto de não ameaçá-la, mas sempre próximo, visando
minar suas defesas. Extremamente atento ao momento em que ela
entregará os pontos e ele poderá consumar o ato final sem o menor
sinal de resistência.
As fantasias são sexualizadas, nas quais ela o surpreende
procurando laçá-lo com uma iniciativa da qual ele nunca foi alvo ou
nem mesmo havia tomado conhecimento. Afinal de contas, acumular
experiências é o que vale. Ou então ela se declara rendida ao seu
encanto, transparecendo que esperava há tempos que ele desse vazão a
realizar tudo que sua imaginação determinasse; se antes não se
abrira, fora por medo de cair perdidamente apaixonada de modo a
redimir arrebatamentos passados. Em suma, fantasias catalogadas à
disposição do sultão.
Os desejos se resumem a poder se encaixar nos sonhos que as
mulheres alimentam a respeito dos homens. Ser aceito na realidade
delas, mesmo sendo figura de ficção. O escorregadio não se considera
num baile de máscaras, apenas interage com o estado brutal de
guerras na selva urbana, tamanha a competição e o consumismo que
deformam o desenvolvimento de sua identidade. Procura fugir do
pesadelo de punhetas apressadas e se inserir no espetáculo em que o
sabor da vida tem o gosto de algo que se espera e jamais acontece.
Os medos, encerrados na caixa-forte da família. Desde pequeno,
sempre se preocupou em não se expor - significaria revelar suas
deficiências. Falho de caráter, de conteúdo emocional
desequilibrado, só não é psicopata porque quer se dar bem na vida,
embora caraminhole perversidades que não dá curso por covardia.
Adora surpreender para confundir o juízo que se faz dele, já que,
por ser uma fraude, tem medo de ser descoberto.
“Quem ele está pensando que é? Entra pela minha casa adentro a
querer casar e viver o resto da vida comigo. Não tenho estrutura
para agüentar esses rompantes quixotescos. Me obriga a separar o
joio do trigo, o bem do mal, e distinguir o futuro do presente,
apoiado ainda no passado.” As mulheres reclamam que o escorregadio
não abusa do beijo; quando o faz, é com absoluta consciência de
envolvê-las na trama. O beijo apaixonado, não voluptuoso, dissipa
qualquer vacilo e a acorrenta, porquanto suga suas fantasias e
subliminarmente transfere a certeza de um amor que abala, que mexe
com seus neurônios, que tira o chão e descontrola sua respiração.
Para não falar da temperatura, que sobe em descompasso com o corpo
que se debulha em soluços de êxtase, um traço da fidelidade que
removerá montanhas. Se braços e pernas desfalecem, pouco importa, é
a entrega em curso.
Missão cumprida para o escorregadio. Ele está no lucro. Pode
cruzar os braços e acender o charuto. Sem perder a ternura, sequer
falar grosso. Sem sair do lugar. Sem mover uma palha. Um fenômeno
ainda não estudado à luz da psicanálise, dada a sua condição de
escorregadio não fixar o perigo que representa.