O OGRO
27 de Setembro de 2004
O ogro, para os padrões modernos, deixou
de ser monstro para ser mais uma versão de sapo, malvisto pela
sociedade porque é feio. Compensado pelo caráter bom e um coração de
mãe, é obcecado por um desejo: possuir uma mulher bonita e mostrar
para os outros que não é tão feio assim. Fama e dinheiro suportam o
incomensurável esforço, arriscando-se a dar com os burros n’água, já
que em matéria de beleza elas deitam e rolam. Pior, toda donzela tem
um pai que é uma fera, a pretender chafurdar um nome que não merece
respeito devido às origens - escritor é vagabundo, surfista é
maconheiro, ator é michê e jogador de futebol é gentinha.
Do ponto de vista do sogro, os ogros se dividem nas seguintes
categorias: mulherengo a caminho da recuperação, vagabundo que só
quer se encostar na família para se dar bem, o vanguardista adepto
do casamento aberto e do sexo livre, e o entrado na idade, o velhão
que quer comer sua filha. Com tal conhecimento de causa da
genealogia do homem, percebe-se que o sangue do ogro corre nas veias
do sogro.
Como se fosse uma corrente pesada, o ogro
arrastará o seguinte dilema para o resto da vida: se ela ficará com
ele por conta de seu poder e carisma perante os outros, ou a
carequinha lhe parecerá simpática, as fuças corresponderão à de um
touro e a bocarra, que não consegue fechar em meio a tantos dentes,
à de um lobo mau... que pega as criancinhas para fazer mingau. E se
ela ficar, poderá lhe parecer feia no correr do tempo, já que
desconfiará de sua aceitação e perderá o interesse. Feiúra e
paranóia guardam uma relação íntima e, no fundo, o ogro jamais
dormirá tranqüilo se a sua princesa passar a considerá-lo bonito. De
imediato, seu encanto será quebrado e a equivalerá a outras mulheres
que só viram nele uma escada ou trampolim. Durma-se com um barulho
desses.
O ogro só funciona em estado de contemplação diante de sua
amada. Capaz de remover montanhas. Corrigir a feiúra lapidando a
matéria bruta, em busca do veio perdido da beleza nos cafundós de
seu interior. Ao só ter olhos para ela, investe-se de uma coragem
que o torna surdo a comentários de invejosos, na medida certa do
cavaleiro galante restaurar sua imagem e conquistar uma aura de
impor respeito. A ponto de servir de exemplo: se ele pode, eu também
posso!
Se chove ogro por toda parte, não cabe distinguir o ogro da
gênese de outros homens que não se consideram monstros. Continuarão,
firme e forte, na caça e pesca de mulheres, acumulando troféus a
ponto de pendurar na parede a cabeça da que lhe proporcionou o maior
orgulho. Proeza digna de repassar a seus descendentes,
confortavelmente instalados na posição de não olhar para dentro de
si - o espelho é uma aberração.
Dando margem a ingressar na terceira idade, do alto de sua
obesidade a zelar pelo culto do corpo nas mulheres, na esperança de
que seu ego seja adulado por balzaquianas, cujas escolhas requerem a
maturidade do pai-avô para seus futuros filhos. Extremamente
pretensioso, há que manter a todo custo a posição de grande
conquistador, se mostrar vitorioso, competir consigo mesmo o tempo
todo, senão a vida não tem graça. Se o tempo não pára - danem-se os
fatos! -, ele passa a competir com o tempo. Mesmo que seus
derradeiros dias estejam próximos e prorroguem-se por 20 anos.
Se o cabelo branco não engana mais como grisalho, pintam-no. Ao
começarem a andar na contramão e a matarem na raiz toda ação
correspondente a uma reação, se tornam, de tão deslumbrados com seu
futuro, babões. Como um bebê que baba extasiado diante do espetáculo
da vida. Nervoso para continuar em ação e penetrar em florestas que
não explorou com uma visão de águia e sim com uma avidez de felino.
Somente para saciar sua fome.
Melhor seria o ogro entrado nas rugas esquecer o sexo e o
Viagra para dançar e cantar numa grande brincadeira de salão. Se
preparar para o verdadeiro baile e se despreocupar com o desempenho,
de correr atrás de quem desdenha só para vê-la debaixo do seu pé. E
não cair na esparrela de se sentir satisfeito com migalhas que só
irão lhe roubar sua alma e desencaminhá-la para algum escaninho do
arquivo morto, onde lá ficará esquecida até merecer as bênçãos. E se
recuperar de uma grande viagem desperdiçada na decadência - risco do
qual ninguém se acautela.