O RANCOROSO
14 de Novembro de 2005
No rancoroso, a ira não é evidente, receia
parecer destemperado e fecha-se como um caracol. Vai que dá o azar de
descobrirem um desequilíbrio desses com que os políticos nos atormentam
no dia-a-dia. Bem que gostaria de libertar o espírito, mas reprime. Por
medo de mostrar sua personalidade devastadora. Não é tanto assim, mas
ele, paranóico, acredita em bicho-papão. Uma criança que teve de
tornar-se adulto. A contragosto. Restando-lhe um arrozal para colher
amargor num terreno alagado que confunde com pântano.
É quando descobre que a vida não é fácil. Vai ter de se deparar
com o ser humano e suas idiossincrasias. Não fará por merecer
chicotadas, mas as terá. E não saberá como responder. Pra que tanta
hostilidade e rasteiras? Reclama do mundo e do excesso de malícia que
desarmoniza seu interior. Adota o estado zen para disfarçar o rancor. A
aversão de pessoas que não alcançam sua sensibilidade. Teimando em
inquiri-lo por não entenderem sua estranha personalidade. Nem desconfia
que já inauguraram um jardim zoológico de humanos exibindo
irracionalidades a granel.
A mídia a serviço da sociedade exige que se abra
a caixa-preta da humanidade. Para do inconsciente tirar pérolas e
examinar o seu teor de pureza. Apavorando o rancoroso, confortavelmente
instalado em sua ostra, se um exército de enxeridos bater à sua porta
para descobrir se compõe uma ópera - a de sua vida - ou música de
entretenimento, considerada banal pelos grilos falantes de sua
consciência. Mas é a que lhe traz felicidade. E não o sossego.
Oh, Deus, até quando aturar o ser ou não ser? Destila o rancor
para não superar os mínimos detalhes e se apegar às grandes causas.
Suas. Inteiramente suas. O desafio espiritual de uma existência que vai
pesar na balança de um homem que não diz o que pensa sob o temor de
expor desilusões que romperam a couraça de sua tristeza.
E se afasta. Bate em retirada. Para que o
enfrentamento, se o estelionato eleitoral desperta uma vontade de reagir
que sufoca e canaliza para o rancor? Calado, discreto, ausente,
violentado pela sanha de homens que pouco se importam com almas que não
se afirmam para sobreviver -fundamental o murro na mesa. Para o
rancoroso, é murro em ponta de faca.
Posicionar-se é uma questão de sacrifício.
Existem nele idéias, entusiasmo, projetos, musicalidade, mas que
trafegam em linha subterrânea. A humildade é o seu lugar-comum.
Anti-social e incompatibilizado com a matéria, almeja ser espírito em
vida e tornar-se invisível, imune às sandices de bêbados, de
despreparados, de auto-suficientes e arrogantes.
Acaba por se tornar ranzinza, afeito a
picuinhas, esgotando sua capacidade de tolerância quando promove cortes
intempestivos no seu círculo de relacionamentos, fazendo biquinho para
quem o desagradar. De uma coisa o rancoroso está certo: cansou-se de
agradar mentes brilhantes, face à disposição de torturarem sua alma ao
perceberem que, como náufrago, lançou ao mar uma garrafa com pedido de
socorro.