O LEGADO DA ESCROTIDÃO
26 de Junho de 2006
O marido fica incomodado quando a mulher
sai de sua sombra e começa a ser enxergada pelos que freqüentam o casal.
Quando cresce em sua profissão e começa a ser ouvida pelos entendidos na
matéria. Quando o telefone toca repetidas vezes e ela é requisitada.
Quando se desvencilha das pendências domésticas com invejável
eficiência. Deixando-o estático, atônito e abobalhado com a autonomia
conquistada - ele não consegue dar esse salto qualitativo. Finge não
sentir inveja. Mas não respeita o trabalho dela nem a sua vida, muito
menos seus interesses. Embora se declare compromissado em compartilhar a
intimidade para ganhar sua confiança.
Ele é do tipo que se acha mais inteligente do que o resto da
humanidade. Gosta sempre de dar a última palavra. Supervisiona a
produção escolar dos filhos para desconstruir redações, inverter o
sentido de monografias e adulterar o estilo. Uma prepotência intelectual
que divide os filhos: o mais velho fica do lado do pai e o imita,
enquanto o caçula prefere continuar alinhado com a mãe. Ele duvida da
psicanálise porque não existe ninguém à altura de analisar sua cabeça
privilegiada. Somente acata a orientação dos professores dos filhos
quando o caçula suja de sêmen os livros da biblioteca na impossibilidade
de fazê-lo na cara do pai. Não respeita nem mesmo o primogênito, que o
vê como um guru, ao enfiar na cabeça dele que pode conseguir outra
namoradinha melhor do que a atual. Ilustrando com o próprio exemplo:
casou muito jovem e não pôde aproveitar a vida. O resultado é ensinar o
filho a esnobar as garotas, até para que ele possa explorar seu
voyeurismo.
Quando a mulher descobre que acumulou
frustrações em troca da dedicação a um marido farsante, acobertado por
um casamento de vinte anos, se entrega a romances extraconjugais aos
quais nunca se permitiu por uma questão de lealdade. Até culminar na
separação, quando ele a acusará, perante os filhos, de ser a responsável
pela desagregação de toda a família. Diante da aliança entre marido e
primogênito, e sem o caçula entender que mãe tem direito ao prazer, ela
resolve enfrentar as feras e correr o risco de ser tachada de
descontrolada, devassa e pôr o lar no caminho do bordel.
Ao cabo de uma guerra surda, ela se liberta desse processo de
tortura mental em que ele não tinha o menor pudor em sabotar o
crescimento pessoal dela. Resta a ele amargar o pão que o diabo amassou
ao revelar-se sem o menor apetite para explorar o que há de mais
abundante: a energia do amor. Se acostumara àquela situação em que era o
rei, trazia-lhe conforto dispor de seus súditos.
Derrotado, propõe à mulher voltar a viver junto e se oferece
para lavar a louça, fazer o jantar, buscar as crianças no colégio,
enfim, se empenhar mais. Só fala em executar tarefas domésticas, mas não
em mudar sua forma de ser. Adota uma postura servil, finge humildade, a
própria vítima das circunstâncias.
- Você quer se esconder dentro desse casamento. Mas não
adianta, nenhuma mulher pode te salvar.
Bendito pai, que deixa para os filhos o legado de sua
escrotidão.