TOALHA MANCHADA DE
SANGUE
15 de Outubro de 2007
Uma mãe que deixou saudades.
O tipo da mãe que cultivou seus pintinhos debaixo de
suas asas. Por amar, confortar e proteger, na alegria e
na tristeza, na saúde e na doença, na prosperidade e na
adversidade, mantendo-se íntegra para ver os filhos
crescerem e serem o que ela não pôde fazer.
Os convidados entram
carregando a massa, o pão, os vinhos e os doces
encharcados em ovos, colhidos de galinhas poedeiras. A
homenagem é dirigida ao filho, que redireciona a mãe, em
respeito às raízes que não se partiram, apesar do
decurso do tempo e da distância, a anos-luz.
Eis que uma das mais xeretas
escarafuncha gavetas a pretexto de procurar um abridor
de lata, cada vez mais em desuso, e se depara com a
toalha da mãe. Uma toalha de linho português de 70 anos
e alguns remendos. Alva como uma virgem angelical, em
quadrados que alternam o rendado e relevos bordados, um
pouco calejada pela trajetória da família. Perdera o
viço e a altivez, mas ainda causava espanto e impunha
respeito.
Estendem-na por sobre a mesa.
Um tapete mágico que convida o filho a viajar no Plano
Espiritual e beijar as mãos de sua mãe, em louvação pelo
que hoje é. Deu um pulo e voltou.
Quando abriu os olhos, a mesa
já estava posta sob a luz de velas, que atrai os
espíritos e a bem-aventurança, o bem-estar só alcançável
pelos santos e justos no Céu. Obedientes, os pratos e
talheres se arrumam no nhoque da sorte que agradece o
mês vencido e abençoa o mês por vencer.
As mulheres tremeram nas
bases. Cacarejam diante de tamanha tradição e da
necessária liturgia que deve ser aplicada em todo
paparico festivo que se presta. O alvoroço toma conta
delas, cruzam-se braços e mãos no afã de servir o nhoque
e comungar com o pão. Hóstia à mão, cadê o vinho? Que
deleite observar o vermelho-escuro encher as taças e a
imaginação, a ponto de despertar lembranças do aconchego
familiar em torno do pai e da mãe que não estão mais
aqui conosco, a criação voltada pro casamento, o desejo
de encontrar um homem que a preencha, o anel de noivado,
o vestido de núpcias em brocados contrastando com a
toalha de linho rendada.
Insufla a fantasia de
qualquer mulher que, em sã consciência, não soterra
valores morais e espirituais transmitidos de geração
para geração, nem sequer disfarça o peso da homenagem.
Mas, equivocam-se no alvo. É à mãe.
Que atende a convocação como
sogra e desce à Terra sem se materializar e se
manifesta. Ao invés de puxar a orelha daquela que
incorporou a nora, sem ela se aperceber, a faz tocar com
a unha bem esmaltada na taça, no afã de servir-se,
tirando-a do equilíbrio o suficiente para partir-se em
mil pedaços, ao bater de leve na borda do prato.
Interrompe-se a comemoração para se proceder à limpeza
dos cacos espalhados pela mesa e pelo chão. O risco de
se cortar era iminente.
Passa-se uma esponja e a mãe
não deixa cair no esquecimento a sua presença soberana e
matriarcal, a origem das origens, a vida passada a
interferir na presente. Espíritos também podem ter uma
recaída e sentirem saudades do apego ao filho querido.
O vinho é servido com todo o
cuidado. Ao levantar a taça, a sogra faz sua mão tremer
e despejar, manchando a toalha de sangue, empapando-a de
tal forma que lembra a menstruação, quando a mocinha se
torna mulher, apta a ser mãe.
O constrangimento remete-a ao
silêncio, em reverência ao espírito da mãe, frustrada
por não caber no corpo da nora, na vida que deixou de
viver.
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