ZUMBIS
3 de
Dezembro de 2007
Sempre que o assunto morte
vem à tona, as pessoas imediatamente associam a
envelhecer, a perder poder, a faltar fôlego, disposição,
energia, a perder de vista a fonte da juventude. A
perdas e danos. Ninguém quer saber de morrer e continuar
vivo, o que importa é deixar de pertencer a esse
universo. Pois se vivemos a contradição do corpo oprimir
o espírito, enquanto o mundo vive a cultura do corpo. O
sentido da morte, eis o mistério, só vivendo a nossa
própria vida, aperfeiçoando e fazendo o melhor de si,
para tentar descobrir.
Só a obra de tua vida
interessa. O que irá desempenhar. O autor é o
personagem. Com sorte, você adivinha o que não sabe. A
vida inteira é demasiadamente curta. Uma história nunca
termina. Ela continua depois de você. A obra é sempre
inferior aos sonhos, o autor nunca se realiza, embora
possa recomeçar sempre. Se você for bastante honesto
consigo mesmo, lembrar-se-á de sonhos que engavetou
traindo sua obra, por não confiar na sua mão torta ou no
seu coração danado.
Adrienne Shelly, numa
profética entrevista, contou que seu pai mandou passear
inúmeros agentes artísticos que queriam contratá-la, sob
o receio de não querer ver sua filha se atirar pela
janela quando atingisse o estrelato como atriz. Não
bastou crescer em sua carreira artística, ela sentia que
sua vida podia ir embora a qualquer momento, daí se
irritar com os atrasos na produção do filme “Garçonete”,
uma metáfora de sua vida: sobre mulheres tentando
encontrar seu lugar no mundo.
Nem mesmo era a garçonete
principal, mas escreveu e dirigiu como as mulheres se
encontram desesperadas com a falta de opção no mercado:
os homens estão conformados por aceitar até onde podem
ir no amor. Um beco sem saída que as leva a se
refugiarem no buraco de sempre. Na fantasia, que as
conduz à mais completa abstração e gradativo
desconhecimento do que estão fazendo aqui, senão terem
filhos e criarem de outra maneira.
Shelly foi assassinada antes
de o filme ser exibido e sem poder vibrar com o sucesso
de sua tese, deixando órfã sua filha de 3 anos. Quando
grávida, sentia no bebê a algema numa existência não
desejada, mas a criança emergiu de seu útero e
libertou-a da prisão. “Garçonete” foi parida durante o
período de gravidez e deixou-a orgulhosa, tanto que, no
epílogo, as duas viriam a aparecer juntas, passeando
felizes, em um plano filmado que não pertencia a esse
mundo.
O filme ficará
irremediavelmente ligado à morte cruel de Adrienne
Shelly: foi encontrada enforcada no chuveiro de seu
apartamento. Um imigrante, com medo de ser deportado,
preparou a cena do suicídio. Desfechou-lhe um soco, que
não a matou, quando ela ameaçou chamar a polícia diante
do barulho de suas marteladas na parede vizinha.
Foi-se um espírito que
assustava com sua ironia naturalista, que costumava vir
à baila com insistência, em busca do amor conto de fada,
um vínculo com a vida, por não encontrar sentido na
morte anunciada. Provocava um nó na garganta nos que não
conseguem domar esses espíritos indômitos. Tamanho grau
de sinceridade desperta a violência em amordaçar uma voz
que não teme se defrontar com zumbis que atravancam o
caminho dos que precisam ver a luz, verdadeiros
espíritos atormentados que se põem no meio dos que
querem avançar e seguram a não mais poder a evolução.
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