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ENCANTADORES DE SERPENTES

O homem ainda não conseguiu se desvincular de uma visão nostálgica e simplória à feição do sexo frágil, o estereótipo da mulher engraçadinha, cheirosinha e comedidamente sensual, encantada com seu príncipe, protegida em seu abraço urso, a corresponder-lhe com um beijo terno e doce. A buscar conciliação e evitar confrontos desnecessários com a personalidade maravilhosa com que todos os homens já nascem. E jamais colocarem em xeque o extraordinário saber deles, pois é melhor que se encaixem num contexto de mundo que o homem pensa, entende e projeta. Caso contrário, que ela vá procurar outro à sua altura! É uma visão antiquada que teima em não desaparecer, na exaltação à princesinha.
A síndrome de Grace Kelly. Que, por sinal, teve seu conto de fadas interrompido num acidente de carro nas curvas das estradas de Mônaco, na mesma velocidade em que dirigia numa seqüência de “Ladrão de Casaca”. Nem quando a vida imita a arte, eles conseguem esquecer da bonequinha de luxo. Condescendente, acha que vale a pena esperar por horas a fio ela se vestir, reforçando o preconceito de que mulher não tem pontualidade e só pensa em se embonecar. Pior que isso só o prazer em ouvir um recado deixado por ela na secretária eletrônica após uma discussão, implorando pelo fim das brigas. O medo de perdê-lo leva ao arrependimento, no desespero faz-se qualquer negócio.
Atire a primeira pedra e serão os primeiros a depreciar essas donzelas no instante em que o fastio se instalar na mente deprê dos encantadores de serpentes. Inicialmente, seus olhos procuram dardejar a vítima com raios de luz oriundos de seu carisma que a cegam, hipnotizando-a. De antemão, captam seu interesse desprovido dos mínimos cuidados com gatunos e sua carência, às vezes cármica, de tão longe que vem a dor – de outras vidas, ora. Ela culmina por vacilar, entregar o ouro, dar mole, mesmo sabendo que o preço a ser pago será alto. Mas valerá a pena, e disso ele está absolutamente seguro. Ela não poderá passar a vida em branco sem entrar em contato com a sensação paradisíaca de encontrar um homem que a ponha nas nuvens, pouco importa se a verdade de um é a mentira do outro.
Houve um tempo em que reinava imponente o dogma de que só se ama uma vez na vida. Não se admitia falhas no que se acreditava raro e transcendental. Ele irá explorar a fatalidade que acompanha a evolução dessa espécie, apostando que ela não desvencilhará de uma cadeia de pares amorosos cujo fim será idêntico ao palhaço que ri para não chorar.
O encantador de serpentes sempre cantará a mesma música. Dá resultado. Daquele balaio ela emergirá sedenta do domínio e controle que ele exerce sobre sua vontade. Uma tirania que procura amenizar com o interesse desusado pelo seu percurso, enquanto filha, neta, adolescente, estudante, a sua escolha profissional, e os desequilíbrios, ressentimentos, queixas e fracassos, o amadurecimento. Mostra-se disponível para atendê-la, do outro lado do balcão. Para catalogá-la, agendá-la e inseri-la no rol de suas esperanças. Por sinal, esmaecidas. Nada que uma boa máscara não resolva, com pitadas de sinceridade em busca de um tempo perdido, entremeadas com o humor indispensável, próprio do mestre de cerimônias. Natural para quem foge da exclusividade afetiva e requer platéia para dançar no picadeiro o forró das ilusões. Seguro morreu de velho, caso a vítima se aperceba do embuste, vale seu espírito de organização e previdência.
O encantador de serpentes é extremamente benquisto na sociedade. Aqueles que não possuem o mesmo talento pegam carona, enquanto seus iguais se regozijam com o sucesso alcançado. Os que torcem o nariz pedem licença e se retiram, mal disfarçando o embrulho no estômago. Se juntarão à turma dos que não tiram o pijama por não suportarem o homem que encanta e se confunde com a serpente. Desconhecendo que não picam, sequer destilam o veneno que imortaliza o amor, porquanto pagãos, imunes a qualquer crença que embeveça e os enquadre como românticos inveterados e ultrapassados. Preferem a malícia esperta a bancar o pato.
Sob protestos de mulheres descabeladas com esses manipuladores que sabotam a essência do encanto – se nada mais houver na vida que, pelo menos, reste o encanto. Não agüentam mais a posição dúbia de serpente, ora encantada, ora réptil. Adeptas do fanatismo da espontaneidade, gostariam de defender a reforma da natureza dos encantadores de serpente. Seria como pendurar as uvas no galho mais alto e descer as jacas para o plano rasteiro. Cadê coragem para mexer num dogma do tope do reprodutor? Foi o homem que criou essa sociedade de consumo, mas quer distância de uma democracia que irá descartá-lo.

Antonio Carlos Gaio:
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