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NUNCA SE PODE AFIRMAR QUE VOCÊ E SUA TRAJETÓRIA IRÃO CAIR NO ESQUECIMENTO

Um saco de lixo cheio de partituras foi deixado, em 2009, na entrada de um conjunto de edifícios onde funciona o Instituto Nacional de Musicologia Carlos Vega, em Buenos Aires. Graças à intervenção e zelo de um porteiro, as partituras acabaram chegando na instituição e lá guardadas num canto por dois anos, depois de restauradas e catalogadas. No saco, havia peças para violão do compositor erudito, pianista e regente, o paulistano Francisco Mignone (1897-1986), cuja obra musical inclui numerosas canções, obras para piano, óperas, balés e obras de cunho nacionalista. Sem registro fonográfico e inéditas no Brasil, foram escritas para o casal de violonistas argentinos Graciela Pomponio (1926-2007) e Jorge Martínez Zárate (1923-1993), concertistas de renome internacional que tocaram nos melhores salões e teatros da Europa e dos Estados Unidos nos anos 1960.
Em 2012, o professor e violonista brasileiro Fernando Araújo, em Buenos Aires, procurava peças para contrabaixo, quando localizou os manuscritos de Mignone no Instituto Carlos Vega. Uma descoberta preciosa ao reconhecer ali um acervo até então desconhecido do compositor, o que inspirou sua tese de doutorado na Universidade Federal de Minas Gerais e que só viria a público em 2017, nos 120 anos de nascimento de Francisco Mignone.
Quando Graciela morreu em 2007, a filha do casal distribuiu o acervo dos pais entre os alunos (ambos tiveram longa carreira docente), sendo que um deles devolveu num saco preto entregue às baratas o conjunto contendo peças de 1970 compostas para violão, instrumento pelo qual Mignone tinha pouco apreço, tanto que ele próprio considerava-o limitado e cansativo, embora romântico e simpático, em depoimento dado ao Museu da Imagem e do Som em 1968.
De repente, em 1969, Mignone comparece a um seminário de violão e, a pedido dos violonistas, passa a construir em tempo recorde uma obra extensa e profícua para o repertório do instrumento, convertendo-se num dos músicos mais completos que o Brasil já possuiu. Quase um laboratório, o que a torna até mais interessante com técnicas de variação de uma riqueza fantástica, completamente diferente a que estaríamos acostumados a ouvir nas gerações seguintes, e capaz de transitar de sua maior vocação que era o piano direcionando seu sentido romântico para dois violões em vez de um só.
Nunca se pode afirmar que você e sua trajetória irão cair no esquecimento, depois que morrer. Não importa se é artista ou não, se deixou partituras como legado ou não. A avó que cuidou dos netos, na ausência dos pais, sempre será lembrada por eles quando crescerem. Igualmente o pai que se transformou no companheiro inseparável do filho. A mãe que ofereceu seu regaço aos filhos no socorro de suas aflições.
Quanto às partituras para violão de Francisco Mignone, seus melhores executantes acabaram ficando de posse; quando morreram, foram parar na rua como lixo, resgatadas por um ser humilde e responsável que as pôs nas mãos certas que, sem ter a quem entregar, deixou-as num canto obscuro. Até cair no regaço de quem percebeu a evolução nos recursos idiomáticos do violão clássico, do formato mais conservador de duo, onde um instrumento só acompanha, para um tratamento mais equilibrado em que os solistas interagem entre si – quase 50 anos transcorreram para se encontrar essas raras partituras, lembrando toda essa trajetória como os arqueólogos escavam para desenterrar fósseis.

Antonio Carlos Gaio:
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