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O PISCINÃO DE RAMOS

O piscinão de Ramos é o grande must do Rio de Janeiro, a cidade maravilhosa coalhada de praias da Sepetiba ao Boqueirão, de Marambaia à Copacabana, da Barra à Ipanema, do Oiapoque ao Chuí. Cavucada na praia de Ramos, o tanque desazulejado de 26 mil m² forrado de material plástico se abastece de água tratada da poluída Baía da Guanabara, no pior trecho, em frente ao maior centro universitário do país, a UFRJ, fazendo fronteira com um CIEP e um Iate Clube dos tempos que os fundos da baía era frente.
Cartão-postal para que os turistas ao desembarcarem próximo dali no Aeroporto Internacional Antonio Carlos Jobim, sob os acordes do Samba do Avião saudando a musa do verão de Ramos, destrinchem à luz do Corcovado, por que é a maior atração do verão carioca.
O acesso é através de veredas tropicais que perpassam as favelas da Praia de Ramos e Roquete Pinto, partindo da Avenida Brasil, que em qualquer estado é a via decadente que integra a periferia com o centro de decisões da urbe, claro reflexo de que 30 a 60 mil banhistas se divertem na certeza de que “tá tudo dominado”. Pelo Terceiro Comando, de camisa amarela, que proíbe o vermelho em biquínis e sungas, cor da facção rival, no esporte que arrasta multidões, o tráfico de drogas. Dia haverá de chegar em que os comandos vermelhos darão um cunho de maior originalidade à razão social, se auto-alcunhando com ídolos que se imolaram em nome da causa, a lista já é grande.
Apesar do baixo poder aquisitivo, não se descarta arrastão no sucesso da onda. Apesar dos banheiros químicos, reproduz-se o incremento do índice de coliformes fecais e de toneladas de lixo constatado em outras princesinhas dos mares, tanto melhor, que se evacue essa merda da baía e se complete a despoluição. Apesar da profundidade que varia de 1 a 2 metros, ninguém sabe nadar nesse país, por isso muitos afundam, enquanto outros deixam afundar.
O piscinão terá enorme peso nas próximas eleições, pois a elite pensava haver esconjurado Brizola com suas piscinas em CIEP no interior do estado sem praia e elevador em favelas urbanizadas, pautada pelo pavor de ele conseguir a tutela do voto do descamisado. Mas a democracia caminhou e, em outras mãos, organismos internacionais passaram a financiar refavelizações, antes execradas por conta de um getulismo subjacente, em nome de um Rio de Janeiro amanheceu sonhando que assimilou e incorporou-as totalmente no tranco do impeachment.
Mas a galinha com farofa, prato que todos brasileiros amam, ainda está entalada na garganta. A praia de farofeiro e gente sem educação é do tempo do onça, em que Nelson Rodrigues já sentia nostalgia do Brasil ao atravessar o túnel Rebouças, a caminho do Maracanã. ZN versus Zona Sul, litoral e interior, praia e roça, capital e província, centro e periferia, chique e suburbano, Copacabana e além-túnel, ipanemense versus tijucano, sul-maravilha e nordestino, provocam o sarcasmo pernóstico e demolidor de que, pelo menos, diminuirão o afluxo dessa gente ao sofisticado gueto, o lixo que produzem e o nível dos arrastões.  
O fato é que a partir do momento em que esses brasileiros se integraram à população economicamente ativa e desceram do morro para deixar de ser gente de cor para simplesmente gente, desconhecendo “o seu lugar” ao freqüentar praias, festas e boates, colocaram em xeque a discriminação num país considerado cordial, tolerante, pacífico e conciliador.
Se não houvesse tanto bochicho em torno da bandeira do comunismo e do MST, bem que poderia se aplicar à reforma agrária os mesmos princípios do piscinão. Uma praia aos pés do povão na quentura do asfalto selvagem corresponde a fixar mais gente na exploração da terra e diminuir o inchaço nas megalópoles ao longo do litoral, por não obrigá-la a se locomover em busca do paraíso perdido como sardinhas em lata, devolvendo-lhe tempo, dinheiro e ganho na auto-estima. Aumentar a produção agrícola e baratear o feijão-com-arroz contribui para reduzir o desemprego, a criminalidade e a miséria que campeia.
Um garotinho que por aqui passasse pensaria ser uma peça de propaganda política, afoito do jeito que ele é. Mas como votamos de acordo com o que nos é sinalizado pelos institutos de pesquisa e publicitários, através da mídia opiofágica, a ensinar que dependemos do FMI, é melhor botar o olho no estrangeiro que desembarcar de pastinha e tentar explicar o canto das sereias do piscinão, quem sabe se não emplacamos mais essa e descolamos uma graninha malandra em favor desse povo sofrido?
E quanto à discriminação, que é o que importa? Ih, ainda falta tanta coisa, como segurar direito o talher sem parecer botocudo, palitar os dentes e arrotar em público, mas isso é falta de etiqueta. Fungar, escarrar e assoar com estrépito, nem um pouco interessado no pagode do potente rádio de seu carro maravilhoso, mas isso é falta de educação. Insistir em jogar o papel higiênico usado na cestinha ao invés de simplesmente apertar a descarga é querer permanecer na cultura da fossa, e isso é falta de classe.
Enquanto perdurar na sociedade o sistema de divisão em classes, gêneros ou etnias, com a preocupação voltada para a linhagem, não alcançaremos o epicentro do terremoto.

Antonio Carlos Gaio:
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