A Humanidade, vez por outra, recorre ao extermínio de parcela substancial dos seres humanos. Não lhe faltam motivos para tal, e ainda os explicita de forma bem clara. Pensa em assim resolver certos impasses, mas a verdade é que, dada a frequência, lhe satisfaz usar de violência e dar cabo de seus irmãos, semelhantes ou próximos, que dissimula como inimigos ou contrários para servir de álibi, fingindo-se de bom samaritano. Costuma se justificar com a explosão de ânimos para determinar o fim da contenda, se for o mais forte. Quanto aos mais fracos, sensíveis e humanos, só resta a capitulação ou implorar por um prato de comida.
Ottla optou por ousar e desafiar. Desde pequena, contrariava as expectativas da família e se destacava por sua rebeldia e espírito independente. Foi uma mulher de coragem inabalável, que escolheu seu próprio destino até o fim. Partiu de uma situação absurda, notória pela expressão “pesadelo de Kafka”, que se refere a uma situação complexa, absurda e angustiante, na qual o indivíduo está detido por um sistema ilógico, burocrático e autoritário, do qual não consegue escapar. Inspirada na obra de seu irmão e escritor tcheco, Franz Kafka, que frequentemente retratava personagens lutando contra forças incompreensíveis e impossíveis de serem investigadas, em oposição a Deus, cujos caminhos são insondáveis para alcançar esse “pesadelo de gente”.
Aos 51 anos, no dia 7 de outubro de 1943, em Auschwitz, onde a morte era a única certeza, Ottla Kafka ofereceu-se em holocausto diante do horror perpetrado pelos campos de concentração. Um gesto que inscreveria seu nome dentre os defensores eternos da Humanidade, quando viu um grupo de crianças ser levado aos trens que as conduziria ao seu genocídio. Uma escolha que ainda ecoa na memória da Humanidade: ofereceu-se para ir com elas. Ninguém a obrigava. Não havia ordem, nem coação. Havia apenas a consciência e a compaixão. Ottla decidiu acompanhar os mais indefesos, acreditando que poderia suavizar o medo que os consumia, mesmo sabendo que caminhava diretamente para a própria morte.
Em Auschwitz, uma ordem bastava para decidir vida ou aniquilação. Ottla e as crianças foram levadas à câmara de gás, sem discursos e nem delongas. Ali terminou a sua jornada terrena. No entanto, o que surpreende é que, naquele espaço erguido para apagar qualquer vestígio de Humanidade, alguém ousou exercê-la até o último instante. Não mudou o destino daquelas crianças, mas transformou-o em um último instante de amor.
A ducentésima quinquagésima primeira intervenção espiritual, em 17 de outubro de 2025, se iniciou com cânticos no intuito de abrir caminho para os espíritos curadores, prosseguindo com a leitura de “Vinha de Luz”, 159 (“Brilhar”), de Chico Xavier pelo Espírito Emmanuel, e estudo preliminar do capítulo 10 (“Bem-aventurados os que são misericordiosos”), item 15 (“O perdão das ofensas”) do livro de Allan Kardec, “O Evangelho segundo o Espiritismo”.
Como perdoar a quem vos trucidou? Como perdoar a quem só pensa em guerra e a vos guerrear? Como perdoar o amigo que vos traiu? Por outro lado, infeliz daquele que reitera: “Nunca perdoarei!”. Se continuar a ser duro, exigente, inflexível, como ousais ser merecedor de perdão para conquistar a tão ambicionada paz de espírito? Se possuirdes um caráter tão melindroso, que se ofende ou se choca com facilidade, cheio de suscetibilidades, transformarás a vingança numa disputa encarniçada que bem poderia ter caído no esquecimento. Já que quantos não dizem “eu o perdoo” para internamente experimentarem um secreto prazer pelo mal que lhe acontece e que bem o fizeram por merecer. Que dificuldade para se reconciliar: “Não quero vê-la para o resto de minha vida!”. O verdadeiro perdão passa por lançar um véu sobre o passado, reconhecível mais pelos atos do que pelas palavras, e próprio das grandes almas, já que o rancor é sempre um sinal de baixeza e inferioridade.
A traição, a opressão, a guerra, o perdão e a paz, em constante litígio, permeiam todo o planeta Terra e os seres humanos que o compõem. In memoriam de Ottla Kafka. Seu sacrifício não foi inútil em prol da Humanidade.