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DEIXEI A VIDA PARA ENTRAR NA HISTÓRIA

Essa é a carta-testamento do presidente da república brasileira, Getúlio Vargas, que se suicidou em 1954 por quererem afastá-lo do poder, mais uma vez, a qualquer preço, para que o domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais voltassem a sugar o povo brasileiro com a mesma intensidade empreendida até 1930:
“Mais uma vez, as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se novamente e se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes.
Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao Governo nos braços do povo. Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo para defender o povo que agora se queda desamparado.
Nada mais vos posso dar além do meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida. Escolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no meu pensamento a força para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com perdão. E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate.
Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia, não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida, agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História.”
Primeiro, no fatídico dia de 24 de agosto de 1954, aos 72 anos, o presidente do Brasil, Getúlio Vargas, meteu uma bala no peito dizendo, em sua célebre carta-testamento, que deixava a vida para entrar na História. Segundo, em 15 de janeiro de 1997, aos 80 anos, seu filho, Manuel Antônio Sarmanho Vargas, atirou contra o próprio coração e deixou um bilhete que parecia expurgar o peso da carta-testamento: “Não pretendo entrar na História, mas simplesmente deixar a História passar.” Terceiro, em 17 de julho de 2017, seu neto, Getúlio Dornelles Vargas Neto, aos 61 anos, disparou um tiro na têmpora esquerda com um revólver calibre 38, pondo fim à própria vida, tal como fizeram seu avô e seu pai. Também deixou uma carta de despedida, que não se sabe se vincula o suicídio aos cometidos anteriormente pela família ou ao seu fracasso político, pois nunca conseguiu se eleger. Nem como deputado estadual pelo Rio de Janeiro em 1986, nem encontrando guarida no partido do lendário Leonel Brizola (aliado histórico de Getúlio Vargas) para se candidatar a prefeito do Rio de Janeiro em 2012, mesmo sendo um dos fundadores do partido e apregoando que defendia o legado político e histórico do avô.
Ernest Hemingway é uma lenda. O escritor, nascido em 21 de julho de 1899, participou de duas guerras mundiais, sobreviveu a dois acidentes de avião, teve seus livros queimados pelos nazistas em 1933 e, como se isso não bastasse, ganhou o Prêmio Pulitzer de 1953 e o Prêmio Nobel de Literatura de 1954. Suas obras mais famosas foram “Adeus às Armas” (1929), “As neves do Kilimanjaro” (1938), “Por quem os sinos dobram” (1940) e “O Velho e o Mar” (1952). Uma vida glamourosa, apaixonado por touradas na Espanha, caçadas de rinocerontes e cudos (antílope africano de longos chifres espiralados) na África (Quênia e Tanzânia) e pesca de marlim em Cuba, residindo ou permanecendo em cada localidade por um bom tempo para escrever sobre essas aventuras, todas permeadas por sedução, paixões, casamentos, infidelidade, amantes e separações. Por isso mesmo, bipolar, avariado por traumas, apresentando transtorno de personalidade com traços narcísicos para desembocar no alcoolismo e tornar-se um bêbado inveterado, sem ser possível distinguir disso tudo o que é origem ou consequência – inspirando seu aforismo: “Algumas vezes um homem inteligente é forçado a ficar bêbado para passar um tempo com os burros.”
Seu pai, Clarence Edmond Hemingway, suicidou-se em 1928, aos 57 anos, com um tiro de revólver calibre 32 atrás da orelha direita, molestado por graves problemas de saúde (diabetes e coração) e pesadas perdas financeiras, que o deprimiram. Ernest Hemingway odiava sua mãe, Grace, por atormentar seu pai com sua personalidade dominadora, e ele, por sua vez, se encolhia diante dela com seu caráter fraco, o que envergonhava o escritor. Sua mãe enviou-lhe, pelo correio, o revólver utilizado por seu pai para se matar. O filho, atônito, não sabia se ela queria que ele repetisse o gesto do pai ou guardasse a arma como lembrança. O suicídio do pai tornou-se um peso difícil de carregar com o tema aparecendo frequentemente em escritos, cartas e conversas ao longo de sua vida, em litígio aparente com a covardia ser o pior destino que um homem pode dar à sua existência, o seu lema.
Clarence e Grace tiveram 6 filhos: 2 homens, Ernest e Leicester, e 4 mulheres, Marcelline, Ursula, Madelaine e Carol. Ernest, Ursula (morreu em 1966, aos 64 anos) e Leicester, que encontraram o corpo de seu pai, posteriormente cometeram suicídio. Leicester Hemingway era o caçula, também escritor, que só se notabilizou quando biografou o irmão mais velho sob o título “My Brother, Ernest Hemingway”, publicado logo após o suicídio de Ernest. Leicester vivia à sombra de seu famoso irmão, procurando seguir seus passos, até mesmo se suicidando em 1982, aos 67 anos, com um tiro na cabeça, depois de passar por cinco operações nos últimos meses de vida, em consequência de diabetes.
A neta de Ernest Hemingway, a modelo e atriz Margaux Hemingway, suicidou-se com uma overdose de barbitúricos em 1996, aos 42 anos. Uma das maiores modelos internacionais dos anos 1970 e 1980, abiscoitando fortunas em contratos de publicidade, mas nunca lidando bem com a forma como foi transformada numa celebridade global assediada por todos, para fazer uso de bebida e drogas como escapismo. Até despencar em sua carreira, entrar com um pedido de falência, o que a obrigou a participar de filmes em Hollywood de baixo orçamento e qualidade duvidosa, tentando explorar sua outrora beleza e juventude de supermodelo, quando sua aparência já era de alguém em processo de franco envelhecimento.
Preocupada com o que teria dado certo ou errado em sua vida profissional, causou-lhe profunda depressão e falta de autoestima o fato de sua irmã mais nova, Mariel Hemingway, ter se tornado uma estrela de cinema e televisão, com casamento e família montados. Margaux casou e separou-se duas vezes, não tendo filhos, sofrendo de dislexia, depressão, bulimia, epilepsia e alcoolismo. Foi encontrada morta em seu apartamento, já com o corpo em decomposição, em 1 de julho de 1996, um dia antes dos 35 anos do suicídio de seu avô famoso, em 2 de julho de 1961.
Ernest Hemingway fez uso do seu fuzil de caça para disparar contra si mesmo, em sua boca. A vida inteira pareceu disputar uma partida de xadrez com o espírito da Morte, procurando postergar a irreversibilidade da morte, negociando o quanto pôde – à semelhança das cenas antológicas do filme “Sétimo Selo”, do diretor sueco Ingmar Bergman. Já que todas as personagens do escritor se defrontavam com a tragédia da inevitabilidade de morrer, forçando-o a acordar de manhã com sua cabeça a mil, começando a construir frases e tendo que se livrar delas rapidamente, até escrevendo-as de pé. Na verdade, Hemingway não quis aceitar que a Morte um dia o resgatasse, sem aviso prévio, das frivolidades e da vida sem sentido a que se entregou, não levando em conta o que ele próprio afirmou: “O homem nunca deve se pôr em posição na qual perca o que não pode se dar ao luxo de perder.” E renegando: “A sabedoria dos velhos é um ledo engano. Eles não se tornam mais sábios, mas sim mais prudentes.”
Aos 61 anos, Ernest Hemingway enfrentava problemas de hipertensão, diabetes, depressão e perda de memória, além de submeter-se a terapias de choque, quando decidiu repetir o gesto do pai, o qual considerava covarde. À época, alguns médicos acreditaram que o suicídio se originou de uma doença hereditária causada pelo excesso de ferro no sangue, chamada de hemocromatose, distúrbio metabólico caracterizado pelo bronzeamento da pele em decorrência da deposição, nos tecidos, de pigmentos que contêm ferro, e habitualmente apresentando sintomas de diabetes – diabetes bronzeada.
“Só os idiotas se preocupam em salvar a alma. Quem diabos deveria se preocupar em salvar a alma quando o dever do homem é perdê-la de forma inteligente, da maneira como você venderia uma posição que está defendendo (no mercado), se não consegue mantê-la, tão caro quanto possível, tentando fazer dessa posição a mais cara jamais vendida. Não é difícil morrer. Chega de preocupações! É preciso ser um homem muito bom para fazer sentido quando se está morrendo”, declarou Hemingway em sua agonia pré-suicida.
O suicídio resultante do inconformismo de Getúlio Vargas de não querer ser afastado à força do cargo de presidente da República por meio de um golpe, e entrar para a História com esse gesto, influenciou de tal maneira os que lhe descenderam, que transformou suas existências numa luta para não ficar à sombra, tornada infrutífera com o suicídio.
À sombra de um carismático chefe de família, que sobretudo foi líder de uma Revolução em 1930 que extinguiu a República Velha advinda da proclamação em 1889, que elegia seus representantes à base do voto fraudado e imposição das oligarquias. Além de presidente eleito, ditador, chefe de Estado na acepção da palavra, líder das massas e “pai dos pobres”.
De igual modo ao filho e neto de Getúlio Vargas, Clarence Hemingway, não mais suportando ficar à sombra de sua esposa Grace por não saber como reagir ao autoritarismo dela, abreviou seu fim, dando por encerrado seu papel secundário perante uma mulher a quem amou tanto, para ter seis filhos, mas que nunca revelou aptidão para desfrutar de sua sensibilidade.
Ernest Hemingway, ao contrário do pai, foi um homem de características notoriamente másculas à feição de sua época, ao se lançar em desafios, aventuras e jornadas de alto risco, como um navegante de outrora que desbravava oceanos sob chuvas torrenciais, trovões, relâmpagos, ventos e ondas gigantescas para alcançar a bonança em terras promissoras. Seu ego pôs-se a caminho num crescendo que ecoou com tanta amplitude, que não suportou o ingresso na terceira idade que prenuncia o declínio, o descenso, a falsa onipotência pela qual se deixou possuir e que agora se esvai como num passe de mágica. Fragilidades essas que se insinuavam e se acercavam, progressiva e perigosamente corroendo sua psiquê em contraste com suas idiossincrasias próprias de um doido, que nem um cavalo quando dispara desembestado pradaria afora ao encontro de sabe-se lá o quê ou aonde.
Para que se preocupar em salvar sua alma se detinha uma biografia que já havia entrado para a História? Se segundo ele próprio, “Um homem de caráter pode ser derrotado, mas jamais destruído”. Não existe uma lei da genética para determinar que descendente ou colaterais de Hemingway, bem como os que sucederam a Getúlio Vargas, herdaram a vocação para o suicídio. Estimulante para o suicida é não conseguir subir ao pódio e não se resignar em ficar à sombra – a família Hemingway que o diga. Ernest Hemingway pretendeu de forma inteligente vender caro sua vida à Morte, desconhecendo que não cabe se despedir com soberba nem se está ao nosso alcance dirigir, manipular ou enganar a Vida, se a senha para ingressar em outra vida (espiritual) é a humildade.

Antonio Carlos Gaio:
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