(Palestra)
Mesa-redonda no Festival de Inverno de Santa Teresa/RJ, em agosto de 1997, no Centro Cultural Laurinda Lobo
Para o escritor, criação é o despudor montado na incoerência que delira em busca dos limites estreitos do formato do papel para ali pousar e depositar suas larvas, de onde brotarão novas libélulas a seduzir outros colecionadores. Daí ver-me compelido a confessar o vício que ulcera minha mente todo santo dia: o de curvar-me diante do papel, em postura de reverência, como que reconhecendo a graça que me concede em espelhar os estranhos contornos da alma humana.
Para guiar minhas mãos na biopse da criação literária inspirei-me no livro A Dúvida, do escritor e cineasta italiano Luciano de Crescenzo. Sabem por quê? Porque ele resolveu me chamar a atenção do alto da prateleira de um sebo, justamente quando iniciava a pensar sobre a estonteante aceleração dos efeitos da universalidade sobre o indivíduo. O “psiu, psiu” do Luciano confirmou-me que coincidências não são acidentais, na verdade se subordinam à necessidade imperiosa de cruzarmos uns com os outros para nos ajudar a encontrar o que tanto buscamos ou, ao menos, um pouco de paz e abrigo face ao inclemente bombardeio existencial do dia-a-dia. Sempre à espreita de nós, pronto a morder nossos calcanhares, bastando despertar do sono e olhar no espelho para reconhecer que ele está ali presente. Daí os povos indígenas terem ficado vidrados com o espelho ao se aperceberem do espírito da sombra que se esgueira do virtual a invadir o convexo, enquanto o homem “civilizado” ainda se debate na redoma de círculos concêntricos que se formou no lago onde Narciso veio a morrer afogado quando se apaixonou pela sua própria imagem refletida.
Bem, em se tratando de criação literária é natural que cometamos atos falhos. Mas qual deles? O poder da criação literária ao invés de mencionar o processo da criação. É que poder nos remete a Deus, embora Deus tenha sido dado como morto em bombástica manchete na revista Times nos anos hippies de 1968. Contudo, quando sequer eu pensava em nascer quanto mais criar, já haviam cumprido sua missão na vida Reich, Ghandi, Freud, Chaplin, Dostoievski, Marx, Beethoven, o Quilombo dos Palmares, Cervantes, Shakespeare, As Mil e Uma Noites, Sócrates e a civilização grega, a Mulher – recém-curada da afasia imposta pela tradição milenar civilizatória -, a China de ontem, hoje e sempre, a Pré-história, as eras paleontológicas, o big-bang e… e o que vem depois, hein? O que me vem à mente é “Deus”. É irritantemente óbvio e relaxante esse tal ópio do povo, não? Contudo, acomodação não combina com criação. E o que Deus fazia antes de criar o Céu e o Inferno? É esta a dúvida existencial que nos apunhala, martela nossa cabeça e nos deixa insones, gerando o clima propício para… imaginar e ter idéias.
Luciano de Crescenzo afirma em A Dúvida que “o ponto de interrogação é um símbolo do Bem, enquanto o de exclamação é o símbolo do Mal”. Avisa para tomarmos cuidado com a Fé porque se usada com muita freqüência – como na religião, esporte e política – pode se transformar em violência; a Dúvida, ao contrário, é uma divindade discreta que expõe suas idéias com calma e está pronta a mudá-las radicalmente assim que alguém lhe demonstre que está errado. Dúvida, Deus, Diabo, Dogma, todos esses conceitos começam com a letra D. De Crescenzo prefere viver duvidando a arquivar Deus como um dado adquirido; por isso proclama que está mais em companhia de Deus do que um católico praticante, sendo possível viver sem certeza quando se é capaz de esperar.
A simbologia da dúvida e ponto de interrogação ressoaram dentro de mim porque no meu livro Lirismo e Truculência, que revela experiências e reflexões de um viajante que procurou desvendar a intimidade dos povos que conheceu, declaro que seguirei fiel ao estilo de me esconder atrás dos pontos de interrogação, por temer o veneno que certas expressões ou formas de pensamento destilam. Nada como a interrogação, atributo da dúvida, montada num veículo automotor, a nos querer atropelar, para a gente levantar o rabo e partir em direção àquilo que ainda não foi realizado.
De Crescenzo observa também que o conceito de tempo é tão impreciso quanto o conceito de Deus. Viver 80 anos, às vezes, é pouco para fazer tudo que você gostaria; para outros, pode parecer in-ter-mi-ná-vel. A pretensão de entender o tempo é de uma presunção sobre-humana: um pouco como a pretensão de querer entender Deus. O que o leva à indagação que fascina os grandes pensadores: é o Acaso ou o Destino que governa o mundo?
No Lirismo e Truculência elejo o deus Imprevisto para abençoar meus atos e falhas ao abrir a jaula e fazer tudo que acreditava estar bem guardado na gaveta, pautado na premissa de que, como o futuro ainda não existe, cabe nele qualquer possibilidade, mesmo a mais remota ou excêntrica. A vida não abre a guarda para desfrutarmos uma forma de ser estável. Somos regidos pela batuta do imprevisto, mesmo porque o que o Destino nos traçou há seis mil anos, já esquecemos ao matarmos a nossa sede nas águas do rio Lete, o rio do esquecimento. Apagando o que vem antes só podemos devanear sobre o que vem depois. Quanto mais se aceita os imprevistos, menos se sente os seus efeitos desastrosos; a sabedoria da resignação abafa a destrutibilidade da revolta, com golpes suaves e certeiros. Portanto, curvemo-nos diante dessa divindade!
Antes que De Crescenzo e eu arrolemos mais dúvidas sobre a dúvida para falar de criação, vou particularizar a questão reportando-me ao meu tempo de infância.
Comecei escrevendo e dirigindo peças de teatro com primos e amiguinhos para a família ver que nós éramos uma gracinha. Entediado com o sermão do padre católico, preferi conversar sobre outras questões com o amigo de fé, o que me custou a expulsão da igreja e o rompimento com a orientação cristã materna. No que descobri a reencarnação, abalando minhas referências de tempo e espaço, rompi com a figura paterna, que me deu livros espíritas ao invés de diálogo. Tornei-me ateu ao ler Porque não sou cristão, de Bertrand Russell. No apogeu do desvario e auto-suficiência que caracteriza a fase da adolescência, principiei a gozar da intimidade com os deuses da mitologia grega, graças ao prazer da promiscuidade entre poder ser deus e ser humano, quando vi-me excluído do processo criativo por longos 20 anos, devido a graves problemas que abriram fendas irreparáveis na estrutura familiar.
O processo de criação só foi retomado após a morte de meus pais, ao escrever Lirismo e Truculência, durante os quatro meses de uma viagem solitária, em torno de mim mesmo, quando percorri a França, coadjuvada por países ibéricos, muçulmanos e comunistas. Neste momento começaram a suceder coisas estranhas: ao escrever um capítulo de 32 páginas, a ele se sobrepôs outro de igual tamanho, que tive de abandonar graças à imperfeição de termos nascido com uma cabeça só. Redigi outro capítulo, longo e completo em quatro horas, de forma psicográfica, após ter sabotado esta experiência tão espiritualizada ao evitá-la por três dias; desatino que nunca mais irei repetir. Este livro só foi mostrado para os amigos, guardado num baú e reescrito em 1995.
Depois de escrever esse livro em 1984, caí num vácuo em meio a uma época de quebra de dogmas, cujo ápice foi a queda do Muro de Berlim. O que abriu espaço para a evolução da espiritualidade, esoterismo e misticismo, dada a necessidade do ser humano se vincular a uma religiosidade, querendo provar a si mesmo que é parte integrante do cosmos.
Em 1990 procurei me disciplinar para escrever através de um micro, que, na verdade, ficou inoperante por dois anos. Em realidade, o que precisava ser operado era o de dentro para fora. Para espantar o marasmo e vencer a insegurança, me imbuí da coragem de expor meu mundo imaginário – que me causava medo – dando margem à erupção de dúvidas e pontos de interrogação que forjaram minha criação literária. Foi então que passei pelas mãos de Luiz Carlos Maciel e Doc Comparato, oficinas literárias, e até de criatividade, para chegar em dois livros publicados, que me custaram desvio na coluna, alergias na pele, hiperatividade e insônia, além da renúncia à vida social e boemia.
Para concluir, alcemos a tampa de nossas caixas-pretas e auscultemos o que ela tem a nos dizer. Um tanto sombrio. Criar também pode ser perigoso porque desfaz alguns nódulos de ilusão, o que leva a pensar que sua alma está empobrecendo, adentrando num nível de consciência demasiadamente realista, distante do lúdico, do ridículo e do risco que delineia a paixão. Na tentativa de enquadrá-lo numa sociedade que está banalizando o cotidiano e as relações amorosas, onde até permitimos que o sublime se esvaia pelo ralo.
Todavia, não se deve projetar no cume a alegria que se instaura na subida, caso contrário os alpinistas prefeririam ser depositados diretamente nos topos das montanhas, através de helicópteros.
Abandono-os com mais essa dúvida arremessada por Crescenzo: mas qual o prazer que existe em procurar e não encontrar?
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