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QUAL É O SEU PREÇO?

  de Antonio Carlos Gaio

 

PERSONAGENS:

Montenegro (Lobista)
Telma (Jornalista)
Jutaí (Mecânico)

 

Som de motor de avião. Montenegro e Telma conversam.
Jutaí escondido no caixote encoberto por um pano preto.

MONTENEGRO – Ah, como é bom estar nas nuvens! Pairar por cima delas e ver o mundo ficando pequeno e distante. Sempre que posso, pego meu avião e dou asas ‘a …

TELMA – Eu só quero que você volte a pilotar o avião.

MONTENEGRO – Tá no automático! Quer que eu lhe sirva uísque?

TELMA – Não consigo pensar em mais nada a não ser que tenho pavor de avião. O que é que tem embaixo daquele pano preto ali atrás, hein?

MONTENEGRO – Bebida e comida. Quer que eu te sirva alguma outra coisa? Meu avião costuma ter de tudo.

TELMA – Estou bem do jeito que eu estou.

MONTENEGRO – Eu soube que você pretende ganhar pela segunda vez o Prêmio Grito do Ipiranga do Jornalismo. Se trata de uma reportagem sobre financiamento de campanha eleitoral por parte dos empreiteiros, não é? Quais deputados e senadores seriam acionados para a liberação de verbas retidas pelo governo…

TELMA – Lobista é uma profissão reconhecida pelos americanos, eles têm trânsito livre no Congresso. Portanto, é do seu inteiro conhecimento a proverbial comissão que desemperra a burocracia…

MONTENEGRO – Mas o governo é mau pagador, não cumpre a palavra. Essa política vem desde o Brasil das capitanias hereditárias. O que implica na quebra de muitas empreiteiras que eu represento. E quem paga a conta é o povo brasileiro. Demissões em massa, não pagamento de impostos… pára de se investir no Brasil. O Brasil deixa de acreditar no Brasil.

TELMA – O senhor está querendo dizer que a corrupção é normal em certas circunstâncias?

MONTENEGRO – Mas que corrupção? Quem falou aqui em corrupção? Estradas, pontes, escolas e hospitais demoram a serem concluídas à espera da inauguração na época das eleições. E o político eleito tem de assumir o compromisso de pagar o que nos é devido. É preciso acabar com essa mentalidade de que empreiteiro é um mestre-de-obra ignorante que ficou rico às custas do governo. Hoje realizamos obras no mundo inteiro, nas plataformas de petróleo em alto-mar, ferrovias na Sibéria, estamos presentes na África, no deserto, nas montanhas, no espaço sideral…

TELMA – Ah, o senhor quer dizer que financiar a campanha eleitoral de políticos é legal e ético. É um adiantamento que os empreiteiros costumam fazer para garantir o pagamento das obras do governo derrotado, e assegurar o compromisso com as futuras obras do governo eleito.

MONTENEGRO – Ninguém entra na eleição para perder, é briga de foice. O político tem de ganhar a eleição e provar ao eleitor que irá ter recursos para tocar as obras e cumprir as promessas de campanha. E o povo, se quiser, que acredite no trem que vai tirá-lo do buraco onde mora para deixá-lo em frente ao local de trabalho.

 Jutaí se mexe no caixote.

TELMA – Acho que vi algo se mexendo no caixote.

Montenegro olha para o caixote e não vê nada.

MONTENEGRO – Impressão sua.

TELMA – Hum, não sei não. Doutor Montenegro, o senhor não acha despropositado bancar campanhas milionárias para eleger um governo que mal consegue pagar a pensão dos velhinhos? E olha que o governo está endividado até a raiz dos cabelos, pouca diferença faz se a dívida é interna ou externa. Afinal, a tendência é de os bancos acabarem todos reunidos em torno da mesma ceia de Natal.

MONTENEGRO – Eu não entendo essa má vontade que existe para com os marqueteiros. Vivemos uma era marcada pela velocidade, pelo desejo de esquecer o que nós fomos e de crescer para superar as humilhações sofridas. São essas cabeças privilegiadas que captam o que o povo aspira, que avaliam se foi certeiro o tiro dado pela polícia no bandido, em praça pública. Eles elegem com clareza o que o povo precisa.

TELMA – Mas o espectador acaba ficando tonto com tantos efeitos especiais que eles criam. Ora é um dedo indicador na telinha, acusando o eleitor de ser o responsável pelo resultado das eleições. Agora inventaram a moda da mão, para enumerar e garantir os direitos do cidadão.

MONTENEGRO – Eu respeito a opinião dos mais esclarecidos, que dizem que a população tarda em saber como votar. Contudo, a campanha tem que esclarecer e informar quem são os candidatos. É absurdo reclamar que o mundo de hoje tem muita informação, que não há tempo para assimilar tudo.

TELMA – Mas tem um determinado momento em que a gente se convence de que o marqueteiro é mais importante que o político, e que ele decide melhor que o povo.

MONTENEGRO – O marqueteiro surgiu para se estabelecer na democracia e valorizar os princípios básicos de Montesquieu…

TELMA – Não seria Maquiavel?

MONTENEGRO – Os empresários têm tanto direito quanto o povão de participar das eleições. Ao entrarem com recursos próprios, inclusive patrocinando políticos de esquerda, somente valorizam as regras do jogo democrático. Não tem por que sentir vergonha de ter dinheiro e saber usá-lo.

Jutaí torna a se mexer no caixote.

TELMA – Tem certeza de que não tem alguém escondido ali?

MONTENEGRO – Imaginação sua.

TELMA – Pode ser, este avião está chacoalhando muito.

MONTENEGRO – É a turbulência, é a turbulência. O que não faz o medo do avião nas pessoas!

 

TELMA – Me diga uma coisa. O senhor é partidário de que o político nunca deve dizer a verdade para o povo?

MONTENEGRO – O político não deve dizer tudo o que pensa. Mas, caramba, se eu disser tudo o que penso, perco metade dos amigos.

TELMA – E quanto a aventuras extraconjugais?

MONTENEGRO – Típico moralismo de sociedades puritanas. A mulher hoje é livre para abandonar o marido que a ridicularize ou correr atrás de outro que a respeite.

TELMA – O senhor nunca nada contra a correnteza, está sempre na crista da onda. Ah, se meu pai estivesse aqui para ouvi-lo falar desse jeito. Ele me contava certas histórias, não muito distantes no Brasil, de uma confederação ou liga de empresários, não sei bem o nome, disposta a patrocinar golpes militares, instituir ditaduras e fechar os olhos para perseguições e maus tratos. Chegaram até a andar de braços dados com a Igreja nos cortejos da Tradição, Família e Propriedade …

MONTENEGRO – Seu pai foi um jornalista iminente dos anos dourados, do romantismo obtuso, em que a imprensa encampava campanhas ridículas como a do O petróleo é nosso.

TELMA – Ele se encontra desaparecido até hoje.

MONTENEGRO – O período de exceção militar prolongou-se demasiadamente, os presidentes exageraram no seu nacionalismo exacerbado. A redemocratização do país foi muito lenta, a linha dura não anteviu que o comunismo vivia seus últimos dias…

TELMA – Os heróicos amantes da liberdade também não previram que a censura viria a moldar o caráter da imprensa, tornando-a ressabiada antes de publicar cada matéria. Afinal de contas, jornais de tradição fecharam e redações foram empasteladas.

MONTENEGRO – Telma, como não podia deixar de ser, a mídia procura acompanhar os rigores de uma era que inauguramos, marcada pela eficiência, imediatismo e competitividade. Ela não tem liberdade para veicular tudo o que o repórter apura. Para isso, existe a turma da edição, que corta e recorta, com absoluto bom gosto e criatividade. E você não é atriz coadjuvante nesse espetáculo. Suas reportagens são encaixadas ao lado de editoriais que aconselham em quem o leitor deve votar.

TELMA – Quer dizer que não resta alternativa para o jornalista? Ou ele adere e passa a integrar as comitivas governamentais, ou modera o discurso e perde o seu interesse pelo leitor?

MONTENEGRO – Ou então ficar na dependência de grampos nos telefones, plantados por políticos… É o tipo da matéria que vende jornal.

TELMA – Pouco importa qual é a fonte, o que importa é divulgar como tecnocratas e políticos negociam em nome do governo, como manipulam os leilões e jogam o preço para baixo.

MONTENEGRO – Corre um boato de que você andou oferecendo vantagens aos funcionários da Câmara para fazer a reportagem sobre os empreiteiros. Parece que a troca de favores deu certo, não é verdade? Fez com que dessem com a língua nos dentes, entregando seus desafetos políticos.

TELMA – Todas as matérias que eu escrevi foram publicadas. E ao lado dos editoriais, como você ressaltou. Não porque atendo a interesses políticos de A, B ou C …

MONTENEGRO – Não adianta tapar o sol com a peneira, você trabalha para um sistema de comunicações que cobre sobejamente os candidatos a quem eu presto assessoria. Em breve, irás ganhar sua coluna de comentarista político, para sossegar o facho e dar retaguarda aos marqueteiros, que necessitam de sua visão sobre o panorama político.

TELMA – Além de querer mostrar a extensão de sua fazenda daqui de cima e de suas milhares de cabeças de gado, qual é a sua proposta?

MONTENEGRO – Tendo o céu como testemunha, exclua da lavagem de roupa suja essa lista de parlamentares. Que sejam mantidos a salvo do respingo da lama.

Montenegro entrega a lista a Telma.

Telma lê a relação.

TELMA – Machadinho, Sálvio, Diomedes, positivamente você não quer que inclua ninguém da turma que pisa macio. Até o Aparício! Você quer liquidar com a minha reportagem?

MONTENEGRO – Caia na realidade.

TELMA – Quem você pensa que é para me pedir uma coisa dessas?

MONTENEGRO – Antes de mais nada, me entregue o gravador …

TELMA – Que gravador?

MONTENEGRO – … e a câmera escondida aí …

Jutaí descobre o pano preto e levanta-se do caixote.

JUTAÍ – Vamos parar com essa pouca vergonha! Chega de papo mole!

MONTENEGRO – Jutaí!!! Que é que você está fazendo aí, escondido?

TELMA – Eu tinha certeza de que algo se mexia naquela caixa. Não sou tão medrosa assim.

JUTAÍ – Estou bêbado e desgostoso com a vida. Sei que o seu avião é uma caixa-forte. Tem de tudo. Acabei apagando, aqui, ontem à noite.

MONTENEGRO – Teu lugar não é aqui. É lá embaixo, como mecânico.

JUTAÍ – Não precisa ficar lembrando que meu lugar é lá embaixo.

MONTENEGRO – É claro, Jutaí, que eu tenho de te lembrar. Você estava ouvindo toda a conversa com a Dona Telma. Que é que você ouviu?

JUTAÍ – Minha mulher não quer nunca mais ver minha cara.

MONTENEGRO – Telma, ele faz parte do teu esquema?

TELMA – Jutaí, o que é que você fez a ela?

JUTAÍ – A vida a meu lado é uma merda. Vê se pode uma mulher dizer uma porra dessas para um homem. Que eu não tenho ambição, que não acontece nada de novo do meu lado, que eu não brigo por nada e por ninguém.

MONTENEGRO – As histórias de sua vida não me interessam.

JUTAÍ – Pois vai te interessar já-já. Esse avião foi programado para cair no rio dentro de alguns minutos.

TELMA – Hein!? Você é um louco assassino. Faça alguma coisa, Montenegro!

MONTENEGRO – Em matéria de aviões, Jutaí sabe tudo, como se fosse a palma de sua mão. Trabalha nisso desde pequeno. Além do mais, eu lhe dei o plano de vôo para hoje.

TELMA – Mas eu pensei que fôssemos dar uma voltinha. O que é que você tinha em mente?

MONTENEGRO – Por que você quer me matar, Jutaí?

JUTAÍ – Porque o mauricinho do seu filho andou fazendo graça com a minha esposa e enfiou-lhe algumas idéias na cabeça. Ela nunca foi de reclamar.

MONTENEGRO – O que é que eu tenho a ver com isso?

JUTAÍ – E o pior, doutor, é que é pra nada. Teu filho não vai querer nunca nada de sério com aquele tipo de mulher. No máximo, algumas chupadas…

TELMA – Grosso, sujo! Mulher só serve pra isso, não é seu ignorante?

JUTAÍ – Tá vendo, doutor, como elas são!

MONTENEGRO – Tem cabimento agora eu ser o culpado, porque sua mulher descobriu o prazer com meu filho? Eu não respondo pelos atos dele.

JUTAÍ – Aí é que o senhor se engana. Tem sim! O seu filho foi criado para ser igual ao senhor.

MONTENEGRO – Não posso ser acusado de educar meu filho segundo as tradições, que vêm desde o tempo em que meus avós imigraram para o Brasil.

JUTAÍ – Não agüento mais ouvir essa baba de quiabo. O senhor está sempre procurando vender o peixe dizendo que o seu não tem espinha. Mesmo sabendo que o seu peixe não será engolido. O senhor só veio ao mundo para usar as pessoas. Em benefício dos seus interesses. Serve aos graúdos e é servido pelos que vocês exploram. Eu e o seu filho fomos criados juntos. Aprendemos a nos conhecer brincando, fazendo farra e jogando bola. Depois foi cada um para o seu lado. Eu me casei e ele sempre reclamando que não consegue encontrar mulher para casar, que elas só estão a fim do seu dinheiro.

MONTENEGRO – Eu também estou preocupado com o futuro dele.

JUTAÍ – Ô, doutor, deixa de ser escorregadio. Seu vaselina! A única língua que o senhor e o Zefinha entendem é a do dinheiro, a do poder.

MONTENEGRO – Eu não gosto que se refira a meu filho como Zefinha.

JUTAÍ – É Zefinha mesmo! Tá sabendo?

TELMA – Ele vai acabar emprenhando sua mulher.

MONTENEGRO – Ela é quem vai conseguir arrancar um filho meu, quero dizer, do meu filho.

JUTAÍ – Calem a boca, seus safados!

Jutaí, de pé, abre as pernas para se firmar no chão enquanto Montenegro e Telma perdem o equilíbrio.

TELMA – O avião está adernando, vai cair no rio! Pelo amor de Deus, parem com essa disputa!

MONTENEGRO – Vou lhe dar uma última chance. Corrija o rumo desse avião.

JUTAÍ – Você não perde a pose, hein!

Montenegro puxa o seu revólver e aponta para Jutaí.

JUTAÍ – Quero ver se tu é homem pra atirar.

TELMA – Não faça isso, Montenegro. Você vai me comprometer.

MONTENEGRO – Telma, não tens outra alternativa. Você passou para o meu lado.

TELMA – Oferece qualquer coisa para ele.

MONTENEGRO – Não é preciso. Basta um tiro certeiro na testa.

JUTAÍ – Tá acostumado a fazer esse tipo de servicinho, né, dotô?

MONTENEGRO – Pode começar a rezar, seu fudido.

TELMA – Não, você vai desgraçar minha carreira.

JUTAÍ – Se me assassinar, as piranhas lá embaixo se encarregarão de fazer o resto com vocês.

TELMA – Piranhas!?

Montenegro e Telma se entreolham.

JUTAÍ – E agora?

FIM

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