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LIRISMO E TRUCULÊNCIA NO AMOR

APRESENTAÇÃO

A peça Lirismo e Truculência no Amor foi extraída do livro Lirismo e Truculência, produto de cartas que enviei aos colegas de trabalho, quando cursava bolsa de estudos em Paris, na década de 80. Cartas sem intenção de compor um livro, em estilo psicográfico, o que equivale dizer sem o tacão da censura interna. Foi transformada num diálogo que um homem trava consigo mesmo, no qual analisa, na maturidade de seus 50 anos, questões levantadas e vivenciadas na impetuosidade dos 35 anos, quando esses acontecimentos se desenrolaram. Ele os relembra com empolgação, enquanto o seu Eu amadurecido, com uma cara de amuado, demonstra não estar gostando nada do que poderá vir a ser no futuro. Não se trata apenas de não querer envelhecer, se trata de…

 

LIRISMO E TRUCULÊNCIA NO AMOR

 de Antonio Carlos Gaio

50 ANOS – Suando em bicas e irritado porque a sunga de minha preferência não quer mais entrar no meu corpo, mal consigo ler o telegrama que anunciava minha seleção para um curso em Paris, quando já havia perdido as esperanças. O telegrama chegou com um ano de atraso. Irei beijar o solo francês em vinte dias.

No auge da empolgação, píncaro que torna as ilusões difíceis de serem abandonadas com o avanço da maturidade, telefonei para Paris e confirmei. Comecei a limpar o mofo dos agasalhos para enfrentar (Pausa) a frieza européia.

Pouco me importava o frio pois não concebo a maturidade a querer ordenar as ilusões, de forma que você não se frustre com os imprevistos da vida.

35 ANOS – Isso me lembra a história de um afoito e insaciável jovem apaixonado por uma mulher mais experiente, assim o dobro de sua idade, que lhe impedia de ter relações sexuais com ela durante o dia, só porque os filhos pequenos estavam em casa. À noite, somente após as crianças adormecerem, ela abria a roleta e liberava o acesso. Ele, afogado em desejo refreado, jamais conseguiria amá-la com a mesma luxúria que exala ao nascer do sol. Positivamente, não é o mesmo tesão.

50 ANOS – Ver, segurar e dobrar suéter, cachecol, luvas, sobretudo e outros agasalhos, vestido de sunga para ir à praia, me fez sentir como um peixe fora d’água. Lembrei-me de que devia participar aos amigos e compartilhar minha satisfação. (Ênfase) O último telefonema foi para ela. (Pausa) Por quem eu me apaixonei não havia nem um mês, justamente quando eu estava por viajar. Vinha de um longo período de solidão no qual me acostumara a não sentir falta, (Enfático) de ninguém. (Voz baixa) Fazia tempo que eu não amava alguém, com tanta meiguice e doçura. Ela estava me ensinando a ser menos ansioso e a não querer tudo para ontem. (Sinal de silêncio) A não mais mentir para mim mesmo.

35 ANOS – Estão vendo essas cartas em minhas mãos? É dia sim, dia não, sem contar os inúmeros telefonemas e as juras de amor no escurinho do cinema. Se ambos estamos tão enamorados, como propor a ela que espere um pouco, porque vou logo ali a Paris, num instante, e já volto? Afinal, era um sonho acalentado há anos viver em Paris e estender a viagem por países árabes e comunistas.

E o que fazer com a impossibilidade de dar seqüência à construção de uma relação de amor? Como remediar a pressão que se abaterá sobre meu coração? Tenho medo de ficar à mercê de sentir (Aponta para a platéia) tua falta. Já sei que combaterei minha ansiedade escrevendo cartas, cartas e mais cartas. (Seduzindo a platéia) O gosto de teus beijos, desde já, considero uma grande perda. (Encarando a platéia) Sei que não somos iguais, por isso precisava de tempo e de te ver, e rever, de te ver, e rever, para que possamos ficar juntos. Será que nosso amor está sendo colocado à prova? Percebo que tremes quando me aproximo, a passos firmes, em sua direção. Seu jeito de gazela acuada me inibe, não quero te fazer mal. Receio, ao me afastar, que você suspire de alívio. (Conclusão) Talvez amar à distância seja mais seguro.

50 ANOS – Embarquei na quarta-feira de cinzas. Ao subir as escadas do avião, penso, despropositadamente, em saudade. Não é uma vaga saudade; nem mesmo aquele gênero de saudade imatura, de não saber se distanciar e viver fora do seu meio, a sentir falta da poltrona predileta, do arroz com feijão, de seu canto; nem mesmo aquela saudade-nostálgica, longínqua e gostosa lembrança de algo que não vai voltar mais; nem mesmo aquele jeito manso de sentir saudade, quando embora se encontrando longe de quem ama, suporta bem a ausência, por se sentir seguro. Ah! A saudade já passou.

35 ANOS – (Circo) Senhoras e senhores, convido todos a embarcarem comigo no inquietante roteiro que mistura as delícias de Paris por entre os estreitos labirintos do islamismo e a indisfarçável crueza do comunismo. Por falar em misturar delícias por entre estreitos labirintos, o que será melhor? Viajar sozinho ou acompanhado?

 

50 ANOS – Viajar sozinho é bastante gratificante e enriquecedor, devido à possibilidade de pintar experiências e transações novas, desde que se corra atrás de imprevistos para que as dificuldades o alcancem. (Num crescendo) E acima de tudo que você não seja um sujeito estressado, não sinta falta da família, nem haja pendências amorosas, para que o pecado more ao seu lado. Claro que, sozinho, você tem mais tempo de se olhar no espelho e pensar coisas que não deve, como por exemplo, pedir colo para a mamãe. Porque, ao se acomodar, você pensa que não saiu de casa e que está a repetir a mesma rotina. Se recuar, talvez outra oportunidade igual a essa não aparecerá. É um desafio fascinante saber que só pode contar consigo próprio, independente de um ou outro apoio, e vencer a parada. Você é quem decide e determina o rumo, o ritmo e a entrega a que está se propondo.

Por outro lado, viajar acompanhado é bom quando o casal conjuga o verbo no mesmo tempo e os problemas são enfrentados a dois, o que é sempre melhor. Sem falar nos orgasmos múltiplos, ih!, perdão… no prazer de poderem trocar idéias sobre a viagem. Torna-se difícil fazer novas amizades, já que o nível de imprevisto diminui. Contudo, a relação tem que estar afinada e com hábitos e gostos por viagens turísticas rigorosamente assemelhados. Senão, pode até acabar com a parceria.

Sozinho, você está a salvo de administrar um casamento em queda livre, todavia, corre o risco de incidentes inesperados, acidentes esperados ou até baratinar; não é de todo absurdo dar pane na cuca. Pinta muita paranóia. Refresquem suas memórias, atire a primeira pedra quem já não viveu esses impasses.

(Pausa)

(Tom solene) Gostaria de ouvir a opinião de quem é mais jovem, o jovem que ainda não viu que tem telhado de vidro, o jovem que se orgulha em não levar desaforo para casa, sua opinião sobre liberdade de expressão. Ou seja, até onde eu posso dizer o que você agüenta ouvir?

 

35 ANOS – É, é um assunto polêmico a liberdade de você poder passar adiante tudo que lhe é transmitido por amigo, vizinho, conhecido ou qualquer outra pessoa, sem restrições, a seu círculo mais íntimo, roda de amigos, colegas de trabalho, até um ilustre desconhecido. (Dirigindo-se à platéia) Eu e vocês temos todo o direito de abordar qualquer assunto, falar a respeito de outrem ou de alguma situação relacionada a mim ou a quem quer que seja. A falar mal e lançar comentários maliciosos. Desde que não seja para difamar e desmoralizar, é claro. Desde que a crítica não seja vulgar nem maledicente. Essa é a fronteira difícil de demarcar.

Por exemplo, se eu extrapolo e me desmancho em revelações, ao longo de uma conversa, (Aponta) com aquela morena ali, sem me dar conta de que andei falando demais, ao final, tenho o direito de implorar: “Pelo amor de Deus, não conte nada do que eu disse senão o Zé me mata”. Agora, se nada é acordado, se não me pedem para silenciar, me sinto li-be-ra-do. Liberado para passar adiante o que quer que tenha sido mencionado na conversa, a meu bel-prazer, sem caráter de fofoca, à semelhança da imprensa, que não precisa fornecer a fonte da informação quando dá a manchete e a notícia.

Para crianças sem papa na língua se dizia antigamente, (Tom grave) respeito é bom e eu gosto; será que é o caso de recordar como eu era feliz e não sabia ou a gente pode falar à vontade, na frente dos outros? Esculhambar o governo porque não combate seca nem queimada. Lamentar onde eu estava com a cabeça quando fui casar com aquela mulher. E aí, eu posso falar o que eu quiser? Abrir o jogo? E vocês também.

 

50 ANOS – Bem, com o tempo, aprendi e cultivei uma aversão aos dogmáticos. Me apercebi que dentro de nós reside um espírito que tem o hábito de saber de tudo, mandar em todos, inclusive em nós. Um ditador que imagina que a vida tem de ser conforme planejou. (Conclusão) A força do pensamento francês domou essa fera.

A França é um país realmente estimulante e que te obriga ao exercício do pensamento de uma forma peculiar. E ai de você se não entrar no papo convenientemente preparado e informado, principalmente sobre política, a deles e a de seu país. Pode ouvir coisas desagradáveis que não saberá contestar e que acabarão por irritá-lo. Eles sofismam muito, partindo de premissas aparentemente lógicas, difíceis de serem refutadas, com brilhante ação discursiva. Para eles, não é muito importante chegar a conclusões demolidoras, bastando salientar uns cinco ou seis pontos e desenvolver sua própria crítica, que já é combustível suficiente para ilustrar um belíssimo jantar. Prefiro debater assim do que com donos da verdade ou dogmáticos, porque não há diálogo com quem se vangloria do ineditismo de suas idéias e impõe aos outros sua maneira de pensar. O francês, pelo menos, tenta reformular sua posição e sempre te leva a refletir um pouco mais. Desta forma, se você deixar-se envolver pela sua abordagem, será forçado a se informar mais. Você é impulsionado a ir em direção a. O que nos remete obrigatoriamente a entrar em contato com o desconhecido. Lá se discute tudo. Essa é a grande riqueza da França.

Nota-se, com facilidade, a existência de um ambiente propício ao livre debate, expresso numa oratória formal e educada, mas nem por isso linear, em que brota a força do pensamento francês, tipicamente filosófico, modulado pela sua experiência de vida e temperado pelo vinho, componente fundamental para imergir num estado de tranqüila reflexão, e, se for o caso, sabedoria.

Agora, devido ao caráter solene, gostaria de levantar uma questão de ordem para os meus nobres colegas. Ou melhor, questão de ética.

 

35 ANOS – Após assistir ao espetáculo de balé de Maurice Béjart, nada melhor do que o singelo cardápio do restaurante L’Entrecôte: filé mignon, batata rostie e profiteroles. Menu simplésimo que não afugentou a imensa fila, o que me obrigou a escapar do tempo lendo “Le Savoir-Faire de L’Amour” – lições, confissões, testemunhos de como fazer amor, bem.

Porém, nem tudo na França é gentileza. L’Entrecôte faz o gênero de restaurante que amontoa mesas. Me acomodaram numa mesa, cujo único ângulo de visão convergia para duas mulheres, tal como se eu estivesse em sua companhia. E estava: eram brasileiras a comentar sobre preferências sexuais. Assunto de meu inteiro domínio, graças ao tempo dedicado à leitura na fila. Começando a me sentir inserido naquela orgia, pensei em confessar ser patrício.

(Ênfase) Por uma questão de ética. No que hesitei além da conta, perdi a chance de pôr em fuga um falso pudor. (Constatação) Logo eu que condeno a hipocrisia.

Elas eram secretárias e moravam em Paris. A loura segreda à morena que o executivo de multinacional, o diretor de seu departamento, é chegado à passividade, necessitando ser estimulado à custa de expedientes criativos. (Sarcástico) A fim de que reaja. A morena babou de gosto. Eu suei frio – prenúncio de diarréia – quando ouvi mencionar que ele é o marido de alguém por quem tenho muita admiração e carinho.

Minha amiga jamais poderia imaginar que o seu marido fosse capaz de ter uma amante em Paris, pois disfarçava bem essa sua categoria de broxura, digamos assim. Sobretudo porque primava pela imagem de alto dirigente bem-sucedido.

O que devo fazer? Calar e ser conivente com a hipocrisia? E no caso de eu abrir o bico, digo que ele é passivo e quem come são as mulheres, ou é preferível me deter no lugar-comum do marido que trai a mulher?

Questão de ética.

50 ANOS – Conivente com hipocrisia, hein… Toda vez que me deparo com um casal que vive, ainda, sob o êxtase do amor, cercado de filhos, sopram-me nos ouvidos um prenúncio de insatisfações. Por ora, deixemos de lado a minha inveja. Por que, ao casar e construir sua ninhada, a fêmea investe-se no corpo e mente de mãe, fazendo desaparecer uma imagem de que nem parece que ultrapassou o abismo que a distanciou de suas avós e bisavós, ao vencer a passividade, a acomodação e a subserviência? Talvez porque a responsabilidade de ser mãe e ater-se a horários e a novas regras de conduta atraiam o conservadorismo, além dos filhos alargarem a sua forma. Insinuar que a mulher só pensa em casar para ingressar nesse Mar da Tranqüilidade também me parece uma solerte provocação, de caráter machista. Tá bem, vamos nos acasalar, mas não precisa atarraxar aquela máscara de mulher séria que finalmente acertou o seu passo.

Se bem que o homem também pode entrar numa de se enquadrar na rotina do amor, incomodado com os decibéis do vozerio nos bares, a exigir um salão exclusivo para dançar com sua amada, deixando escoar pelo ralo sua capacidade de inventar e surpreender.

(Pausa)

Pelo mesmo vão por onde se esgueira a cumplicidade a dois, introduz-se o bocejo que anuncia o tédio. Como se estivesse escrito há milênios, por seus ancestrais, que o matrimônio constitui a grande chance do homem redimir a imagem de cafajeste que lhe é atribuída, por ter de comer uma infinidade de mulheres, para provar à sua mãe e à sociedade que (Enfático) sempre será homem.

Será que, para provar que estamos amando, devemos nos tornar enciumados, possessivos, fechados, até mesmo agressivos, refletindo uma mudança violenta de comportamento? (Caso do casal que namorava virando as costas para a festa).

(Conclusão) Sinceramente, pensei que o amor fosse para nos deixar vibrando e tirar a cera do ouvido para compreender melhor (Pausadamente) “tudo que meu amor quer dizer pra mim”.

35 ANOS – Você é muito romântico, do tempo de “Paz e amor, bicho!”. Que inocência besta querer revidar uma agressão com uma flor. Será que não está vendo que o homem e a mulher complicaram tudo?

50 ANOS – (Pensativo) A “rotina do amor” sempre foi um assunto que me causou insônia. Afinal de contas, é impossível pregar o sono se você dorme ao lado de alguém que não quer mais. Hum, como será que os franceses se aproximam e se relacionam afetivamente aqui em Paris? “Qualé” o dessa gente que lê muito, vive para comer sem engordar, torpedeada por perfumes e cosméticos que nos instigam a desvendar o seu mistério? Resolvi sair conversando com madames, mademoiselles, estudantes, pessoal de turismo, da embaixada, do curso, estagiários, tecnocratas, chofer de táxi, recepcionistas de hotel… e até com brasileiros!

E sem essa de preservar intimidade e privacidade. Por incrível que pareça, a pesquisa foi realizada sem qualquer experiência de campo, absolutamente despida de sexo.

Para se aproximar (Diminui a velocidade) há que obedecer um ritual. Primeiramente, é necessário jantar a fim de conversar sobre assuntos gerais; para o francês, a negociação tem passagem obrigatória pelos queijos e vinhos, cuidando-se para que o entendimento não capote na trivialidade e na superficialidade. No próximo encontro, se ela assim desejar, convida-o para um drinque na casa (Ênfase) dela, porque (Ênfase) a sua não merece confiança, (Ênfase) ainda. Você está na sua mira de observações (Diminui a velocidade) e o tempo passa, passa, passa… Ah, é demorado demais! Muito chato… existir um ritual. Se bem que no Brasil também exista mulher especialista em deixar o pobre coitado mofando.

35 ANOS – De fato existe, mas se brincar muito acaba perdendo a vez para outra. No frigir dos ovos, é besteira confundir com promiscuidade sexual. Há quem indague, provocativamente, se no Brasil já está convencionado que é para acontecer no mesmo dia da atração fatal. Depende do momento, da vontade, de seus desejos à flor da pele, (Sarcasmo) da cabeça fresca… do que está pintando. Se os dois estão no barato da colisão, deixa rolar. Por acaso, o francês lá vai entender esse jogo de sedução? Nem eu entendo! Eu sinto.

50 ANOS – Reconheço que é importante um jogo de cena delicado, gestos graciosos, uma certa elegância, até uns salamaleques. O interesse pressupõe o ritual. Ainda mais que são acessíveis e fáceis de se aproximar, sem sombra de dúvida. Adoram papear, momento em que demonstram, para todos os gostos, seu charme, elegância e classe, preservados pela timidez. Ah, como é gostoso vê-las miando, fazendo biquinho, cheias de mimo! E quando jogam os cabelos para o alto e sorriem gostosamente?! São atraentes e envolventes, sem serem despudoradamente provocantes, mesmo se decidem nos encarar fundo.

35 ANOS – Porém, quando você tá a fim, sem essa, ô cara! Isso é coisa séria. O sangue começa a subir e aquela veia que todos conhecem fica protuberante.

50 ANOS – Que é isso, não engrossa, elas interpretariam como ato de selvageria enquanto (Mão no peito) nós achamos que elas não têm jogo de cintura. Se tentar cair nessa besteira, tudo piora, ela irá mantê-lo à distância como se você tivesse sido mordido por um cão raivoso. (Olhando firme para o 35 ANOS) Elas são exímias em provocar paixões, incitam o orgulho da conquista, são caçadoras que se fingem de presas.

35 ANOS – Eita! Fala baixo porque tem mulher ouvindo. Você viajou apaixonado, com pavor de ficar à mercê de sentir a falta dela, prometendo escrever cartas e mais cartas. Que irão pensar de nós homens, se ela lhe ensinou a não mais mentir para si mesmo?

50 ANOS – (Indignado) O amor tem ritual, viu? Aqui na França, tem de seguir os canais competentes. Afinal de contas, como todo francês, ela também é burocrática. Para chegar no seu âmago, tem de dar muita volta, pois a francesa é in-ten-ci-o-nalmente indecisa, (Ênfase) no amor. O “jeitinho” não funciona com elas. São muito desconfiadas e têm medo. Embora amem transparecer segurança. Lutam bravamente para que o instinto sexual não afunde a razão. Um homem não penetra em sua intimidade sem que ela não tenha escolhido o lugar que lhe é reservado.

35 ANOS – No Brasil já é assim também, nunca sei qual é o papel que devo protagonizar. Se o contumaz sedutor, o solícito ou o misterioso. As brasileiras preferem o desafio, o perigo iminente e a sensação do risco. O Terceiro Mundo não tem nada a perder, não é, não? É o nosso ritual. Parece que foi Balzac quem afirmou que mesmo as mulheres menos ardilosas têm armadilhas infinitas. Mulheres estúpidas vencem pela pouca desconfiança que despertam.

50 ANOS – (Triste) Acabo de receber uma carta que me pegou de surpresa. (Mais triste) Ela me deixou, entregue à minha própria sorte. Será que ela não agüentou ler minhas compulsivas cartas, ou melhor, não agüentou me ouvir? Acho que toquei em assunto que não podia mexer. Mas se ao amar, a gente não puder falar demais, vai falar quando? Agora sim, sinto-me mais engajado nas desditas amorosas, simplesmente porque fui dispensado por carta, modalidade essa cujo sabor desconhecia.

Inconformado, decidi pôr as coisas em pratos limpos. Telefonei para o Brasil e uma voz masculina informou-me da ausência dela nos próximos vinte dias. Voz do filho adolescente, que virou homem em curto espaço de tempo; preferiria que a filha fosse a porta-voz, pois, numa fração de segundos como essa, (Anuncia em voz alta) som de macho perturba, irrita e dá vontade de pedir asilo num país de ideologia machista.

 

35 ANOS – A dor da separação foi curtida em meio à massa que lotava o pitoresco mercado de Marrakech, esgueirando-me por entre os encantadores de serpente, ao longo de becos que mal davam para passar, obstruídos por burricos que apreciavam as mercadorias sem nada comprar, defecando e urinando despudoradamente.

Depois de me oferecerem tapetes, potes de latão e adereços de couro, preferi abandonar o estranho traje de estrangeiro, assimilando o caráter e a cultura árabe ao comprar e vestir uma túnica de tuaregue. Imediatamente, todas as portas se abriram e passei a privar da intimidade do recinto do lar a qual normalmente não dão acesso a estranhos, entrando em contato com suas esposas, filhos e agregados. Em suma, botei os pés na cozinha, santuário de qualquer lar. Foi-me oferecido um reconfortante chá e as iguarias típicas que tanto admiramos.

50 ANOS – (Solene) É hora de guardar a bandeira preta, faz-se necessário deter a tristeza do luto que descompromissa o amor. Sem nada ter sido comentado ou perguntado, a profundidade do olhar árabe detectou em mim a origem, o perfil (Gesticula) e o porte do sheik que vos fala, à altura da ninfeta de 14 anos que queriam me ofertar. Em troca de um dote, evidentemente. Pronta para ser remetida ao Brasil, livre de impostos. No que alcei os olhos e deparei-me com Fatima, dissipei a dor de ter sido jogado fora. (Em tom conclusivo) A dor é passageira, só permanece se você deixar.

35 ANOS – Fatima estava sentada à minha frente, atrás de um véu a cobrir o rosto, desnudando apenas o amarelo de olhos insinuantes e sequiosos de serem encantados por um feiticeiro de outras paragens. A tonalidade do véu era idêntica à de suas vestes, de cor prateada com listas verdes em diagonal, purpurinadas. Traje de gala digno da relevância da oferta. (Mão no peito) Confesso minha sedução pela ninfeta, bem como pelo inusitado da proposta. Senti-me desafiado a quebrar a melancolia que ela herdou de outras gerações, cujas tradições aprisionam o ser humano. Quem haveria de dizer, se consumado o acordo, que sairia de Marrakech já noivo? O que a minha família e amigos iriam pensar de mim?

50 ANOS – A censura interna impediu-me e cassou mais uma das inúmeras possibilidades de prazer e felicidade que riscam nossa visão (Pausa) morosa. Sem sequer ousar um derradeiro olhar para trás, saltei num tapete mágico que me levou à inesquecível Casablanca de Humphrey Bogart e Ingrid Bergman. Ao som de As time goes by.

35 ANOS – (Ar de surpresa) Eis que uma delgada mão pousa no meu ombro. Tremo todo. Precisava daquela mão. Graças à carência afetiva, começamos a dividir problemas íntimos, sabe-se lá Deus por quê. Ela abriu portas e gavetas de (Ênfase) seu passado. Na maturidade de seus cinqüenta anos, ela sabia ouvir e se fazer ouvida – rara qualidade hoje em dia – absorvendo meu modo de pensar e encarar o desconhecido.

50 ANOS – (Conclusão) As mulheres, no Brasil, costumam se queixar muito dos privilégios que os homens ainda têm, sendo-lhes fácil arrumar uma enfermeira para desentubar e removê-lo do CTI do amor, sedando-o de forma a apagar os vestígios (Raiva) daquela miserável que desgraçou sua vida.

35 ANOS – Para se molhar os pés nas praias de Casablanca, há que se percorrer uma vasta extensão de areia, como se estivéssemos atravessando o deserto atrás de uma miragem. Foi lá que ela se aproximou de mim, (Gesto) fingindo que tirava areia de meu braço, penetrando-me fundo. Nos meus olhos. A me conquistar.

O que provocou alarido de uma turba de quinze árabes a reclamar das cenas de idílio, proibidas perante as leis do Alcorão, por ser interditado às mulheres demonstrar seus sentimentos ao ar livre. Orientei-a para sair de fininho em direção ao hotel, enquanto eu enfrentava o bando de homens (Sarcasmo) indignados pela imoralidade que tomou conta do balneário. Em francês, tentei explicar que era brasileiro, de cultura distinta, e que simplesmente me esqueci dos sagrados mandamentos. Trêmulo de cagaço, pedi mil perdões por ter profanado o Alcorão.

50 ANOS – O cintilar de um punhal afiado na mão de um deles fez-me recuperar a coragem. Troquei de idioma e profanei a mãe deles em português, iniciando um bailado no ritmo de capoeira (35 ANOS dança capoeira), como eu se fosse enfrentá-los. Ante seus rostos estupefatos, evoluí tal como faria o cangaceiro Corisco tomado pelo Diabo, dando rodopios como se tivesse uma peixeira nas mãos a furar o bucho dos soldados da Força Pública (35 ANOS rodopia).

 

35 ANOS – Valha-me Deus! Nossa Senhora! No que abriu um clarão, fugi correndo, sem acreditar que escapei com vida. Os efeitos especiais do espetáculo tanto impressionaram Alá, que Ele deteve a mão de quem queria apunhalar.

 

50 ANOS – Isso me fez lembrar o pânico europeu em transbordar afeto e carinho quando me despedi da Tchecoslováquia. No famoso Café Europa, cujo cenário, fiel ao velho estilo decadente europeu, regurgitava de autênticos protagonistas da vida noturna de Praga. No seu efervescente entra-e-sai, removiam o disfarce da crueza do comunismo e se livravam do torpor e acomodação em que se encontravam.

35 ANOS – Ao me despedir de meu anfitrião, guia e amigo Stanislav, fiz menção de beijá-lo no rosto, como demonstração de carinho e amizade por tudo que tinha feito por mim na Tchecoslováquia. Hábito normal até entre os árabes, que se beijam nas duas faces, ou mesmo entre os homens de origem eslava, que se cumprimentam com um toque suave dos lábios, (Gozação) sem que a perigosa língua interfira no assunto.

Stanislav sentiu vergonha de beijar-me, na frente de todos. Deve achar que um homem de verdade não pode se dar ao luxo de sucumbir diante de tais fraquezas – debilidade emocional típica de latino. Tão achincalhado por ele, que nos avacalha, não entendendo porque necessitamos tanto de caudilhos na América Latina para dirigir nossos destinos.

Stan deixou-me beijar sua face, com muitas reservas, o que me surpreendeu, pois fora ele que havia indicado o Café Europa, point da vanguarda tcheca. Apesar do constrangimento, não cairia bem rejeitar meu beijo para não parecer antiquado.

50 ANOS – Para manter aquela compostura, eu diria postura – ou seria frieza européia? – vivia neuroticamente, tenso e com medo do futuro. Comunista convicto, receava que a cortina protetora do socialismo desabasse. Ele estava se encaminhando para se isolar, bem protegido dentro do seu individualismo, levantando as paredes do mundo que estava construindo para se encarcerar, face ao temor de não querer sofrer outras decepções. Especialmente as amorosas, na condição de passivo amante de uma mulher casada. Beco sem saída. Desafogado por tiques nervosos e manifestações, ora de afeto, quando me fez entrar e assistir à exibição exclusiva da ópera La Bohéme no Teatro Nacional de Praga, ora de retraimento e distância, como durante o adeus no Café.

É até fácil burlar a indisfarçável crueza do comunismo; difícil é quebrar a frieza européia, que tenta dissimular um indisfarçável pavor de que afeto e carinho possam (Ênfase) transtornar sua vida. (Ênfase) E transformá-la.

 

35 ANOS – Sabe como eu vislumbro o futuro de minha geração? Exímios jogadores de pôquer embaralhando nosso código genético, garotos superdotados nos reprogramando, médicos preferindo a clonagem no lugar da incisão. Será que não é hora de pensar em substituir-nos por andróides? Talvez a mistura entre as raças seja a última chance de o ser humano provar a si mesmo que não merece ter destino igual ao dos dinossauros.

 

50 ANOS – (Impaciente) Já estou farto de conviver com as multivariadas revoluções de costumes, em todas as vidas por que passei. (Indignado) Ora sendo queimado pelo tribunal inquisitorial. Ora a intolerância religiosa obrigando-me a fugir para a América, a fim de construir (Deboche) aquela sociedade livre e justa. Ora indo para o calabouço, no período vitoriano, por defender os direitos da adúltera e do homossexual.

 

35 ANOS – Tem que haver alguma lógica na evolução do homem, mas não consigo encontrar nexo em tantas transformações nas estruturas das sociedades. Perdemos contato com o selvagem da natureza em que se podia gozar a liberdade do sexo e do prazer, sem se preocupar com atentado ao pudor. No reino dos faraós, não havia tabus impedindo as relações entre os consangüíneos. Nas civilizações greco-romanas, os jovens eram iniciados sexualmente pelos senadores e retribuíam a lição saciando-lhes a fome, enquanto os escravos satisfaziam as fantasias sexuais das mulheres dos tribunos.

50 ANOS – (Indignado) Já estou farto de estudar, rezar e praticar as inúmeras filosofias que sustentam as religiões, baseadas na premissa de que (Batendo no peito) A verdade está é comigo!. Ilustradas por profetas, apóstolos, dalai-lamas e pastores que nos proporcionam a correta interpretação dos fatos que cercam o Divino. (Anúncio) O Messias está por vir!. Que absurdo! Já foi crucificado!. Até hoje Maomé decide sobre como a mulher deve pensar e agir. E mesmo Buda tendo provado que sobreviveria apenas com o que a natureza lhe ofertava, não consigo me imaginar reencarnado em inseto, vegetal ou mineral.

35 ANOS – (Indignado) Já estou farto de guerras, pestes e de testes nucleares em atóis no Pacífico.

50 ANOS – A caminho da extinção ou em processo de aculturação a credos, etnias e formas de viver execrados no passado, o ser humano não pode correr o risco de se perder em seu próprio planeta. Ainda mais que o amor já cambaleia ao sabor desse impasse, por se recusar a ser um instrumento de dominação. O amor agita os braços nervosamente, que nem um recém-nascido, reclamando para que o vejam e o reconheçam.(Pausa) Ele não é mais o mesmo. (Pausa) Nem eu. (Olhando para a platéia) Nem nós. O que nos ensinaram já não faz parte de nosso meio. (Contar 1, 2, 3)

50 ANOS E 35 ANOS – É preciso ter coragem para achar esse amor dentro de nós.

FIM

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Antonio Carlos Gaio
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