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II-)UTOPIA DO AMOR ETERNO

 (Palestra)

Debate extraído de seu livro Ilusão de Ótica, no Projeto Paixão de Ler, na Biblioteca Popular de Santa Teresa/RJ, em outubro de 1997

O tema do debate foi extraído da temática predominante no livro ILUSÃO DE ÓTICA, onde há inclusive um conto com esse título. Por que a escolha da Utopia do Amor Eterno para o debate?

Em primeiro lugar, cabe esclarecer que iremos tratar aqui exclusivamente de amor. O que é difícil, porque a tendência é evocar a interferência de questões materiais para justificar o desamor e a descrença no amor. Ou seja, eu desdenho você a tal ponto que você vai deixando de me amar e se recolhe na descrença no amor. Portanto, proponho que desvinculemos o amor, ao menos neste debate, de diferenças sócio-econômicas que cotejem o casal – diferença de ambições -, do desemprego, da distribuição de renda, da separação litigiosa, da guarda dos filhos, dos advogados. Deixemos tais assuntos para fóruns mais adequados como os da política, da justiça de família, do sociologês ou economês, que analisariam a viabilidade do casamento no mundo globalizado.

De que vamos falar afinal? De como homem e mulher se encontram e desencontram afetivamente no final do século XX. A incapacidade de entrega ao amor. O medo de amar de novo. Ou descobrir que nunca amou e vai passar em branco na vida. Poder se enamorar sem se incomodar com o ridículo, por estar babando de admiração, sendo capaz de fazer tudo por ele (ela). Acreditar que o amor pode mudar tudo. Que isso não é ilusão de um idiota apaixonado.
Provemos aqui que não é irreal tratar de amor, melhor dizendo, das relações, mesmo havendo falta de grana. Afinal, como é do conhecimento geral, os que vivem de salário-mínimo também padecem dos males do amor ou podem ser imensamente felizes no seio de um casamento celebrado na Igreja Universal, conforme cotejo no conto A Brasa a mesma vontade de amar de verdade entre uma executiva e sua empregada crente.
Bem, utopia do amor eterno. Não farei nenhuma correlação do tema a quaisquer injunções de ordem religiosa, a exemplo do solene “até que a morte nos separe” que lapida o casamento cristão. No meu modo de entender, é mais genuíno associar amor eterno a Romeu e Julieta, que nos faz dar suspiros que sufocam o coração até hoje. Eles se sacrificaram em nome de um amor que todos ambicionam viver.
Espera aí, mas isso é lenda; lenda que se converteu em paradigma do amor. E nada como a arte shakesperiana, burlesca e popular, a impedir que se fechem os olhos para um sentimento que pode vir a desbaratar todos os seus planos, aniquilar suas certezas, atacar seus nervos e até obrigar a entregar os pontos, ainda em vida.
No entanto, o século XX descerrou o véu da hipocrisia, franqueou a entrada da mulher na arena e baixou a testosterona do homem, cenário ideal para a pulverização da utopia do amor eterno.
Cabe frisar que, como sou um escritor que navego por entre dúvidas e questionamentos, sem preocupação em buscar verdades definitivas, me sinto à vontade para lançar as seguintes provocações: Os relacionamentos amorosos ainda estão condicionados por este mito do amor eterno? Será que lá no nosso íntimo, de uma forma inconsciente, ainda exigimos que o amor seja eterno? O inconsciente coletivo ainda nos exige que o casamento tem que dar certo, tem que se eternizar?
E como conciliar essa idéia – antiga? – de amor eterno com a dinâmica comportamental da modernidade que afeta a vivência do amor? Tal como: o descarte fácil do parceiro, o efêmero das relações, o não-saber quem eu sou e quem tu és porque não fomos educados para esse mundo, a falta de garantias que abre caminho para a instabilidade de não poder viver com outro ou não saber viver com outro.
Será que ser feliz é ficar retido à escravidão do mito do amor eterno, ou seja, ter que viver junto ao lado dele (dela) para sempre? Ou é sair em busca de um parceiro que complemente a outra metade da maçã, concedendo-lhe a dádiva de se sentir inteiro?
Bem, e para mim, como é que tudo começou? Foi quando tinha 9 anos, ao assistir à cena do meu pai indo embora de casa, separado de minha mãe. Dei graças a Deus por não precisar mais me esconder debaixo da coberta para não escutar aquelas brigas.
Minha mãe jamais viria a conhecer outro homem e eu, como filho, perdi a pureza de seu amor, apartando-me dela. Todavia, a tristeza foi sendo gradualmente suplantada pela curiosidade e fascínio provocados por romances vivenciados por primas mais velhas. Fazia de tudo para testemunhar suas histórias. Me escondia atrás do sofá, debaixo da mesa e em cima do telhado, a fim de ouvi-las trocar juras de amor. Cheguei a me enrolar numa cortina para que visse um beijo de causar escoliose, só comparável ao do Clark Gable e Vivien Leigh em “E o vento levou”.
Minhas primas também choravam, gritavam “nunca mais quero ver a cara daquele homem na minha frente!”. Dia seguinte, lá estavam fazendo planos para se casarem.
Eu não entendia patavina, mas confesso que aquela mise en scène me seduzia, me arrebatava.
Foi aí que eu fiz a descoberta: “Sou obcecado pelo amor!”
Obcecado, cavei todas as chances que a vida me retribuiu para conhecer o amor. Mudei de direção tantas vezes quanto necessário, ao sabor de diversas experiências amorosas, desde o véu e grinalda, passando por casas separadas, intercaladas de paixões que demonstram os desatinos e desequilíbrios a que qualquer um está sujeito, até descobrir o que realmente desejo.
Aí me dei conta que só estava olhando para o meu umbigo. Notei que havia muita gente à minha volta, aliás muito mais do que eu pensava, andando às cegas, ensurdecidas pelos celulares e walkman, e a falar sem parar para impedir que a voz de dentro aflore. Foi então, num longo período de boemia, que passei a observar, geralmente pelas madrugadas, que as mágoas e queixumes amorosos transbordavam, inundando-me de histórias.
Guiado pela obsessão, me impus a condição de escrever histórias sobre encontros e desencontros, tendo sempre como foco o amor.
De forma diferente de Diane Ackerman, que, em sua obra, “Uma história natural do amor”, examina os aspectos culturais, biológicos, mitológicos e sociais da psicologia do amor, desde o Egito antigo, Grécia, Roma e Idade Média, discutindo idéias de Platão, Freud, Proust e Stendhal.
Segundo Diane, Stendhal, em seu famoso livro “De l’amour”, atribuíra a outros homens, personagens, aquilo que na verdade acontecera a ele, ao apaixonar-se perdidamente por Mathilde Viscontini, mulher que brincara com seus sentimentos e sequer compreendera o escritor. Ela não o rejeitava por completo; concedia-lhe apenas uma única visita a cada duas semanas para manter vivas suas esperanças. O domínio que tinha sobre ele a excitava desmesuradamente. Ele chegou a escrever o romance “Métilde”, um rol de súplicas a Mathilde, palavra por palavra; mas para o leitor comum, obra profunda, perspicaz e esclarecedora sobre o amor. Trata-se da história de amor não correspondido de um homem atormentado por uma mulher.
Ao analisar sua paixão, Stendhal tentava compreender a natureza do amor, de forma a poder libertar-se dos grilhões e exorcizar os demônios que tanto nos atormentam. Considerava a paixão um sentimento desafiador, romântico e devorador que não precisa ser correspondido. Descreve a paixão em estágios. Primeiro, admira-se. Segundo, espera-se que o sentimento seja retribuído. Quando a esperança combina-se à admiração, o amor nasce.
Depois ocorre a “cristalização”(conceito fundamental de Stendhal), tendência do apaixonado idealizar o ser amado, imaginando-o mais belo e nobre do que qualquer outro ser humano. Compara com o que acontece a um galho de árvore seco atirado num poço abandonado; quando é retirado 3 meses depois, encontram-no revestido de brilhantes cristais de sal, enquanto o ramo original torna-se irreconhecível, ou seja, o original perde o interesse, sobrepujado pelo cristal.
Após a cristalização, a dúvida e a apreensão insinuam-se, pois o homem não tem certeza se é capaz de atrair a mulher e fazê-la amá-lo de verdade, ao passo que a mulher duvida da sinceridade, se é digno de sua confiança, talvez interessado apenas em sexo e que irá deixá-la rapidamente. Etapa seguinte: exige-se a vistoria anual de a quantas anda o amor, havendo que produzir uma renovada prova do amor. Caso contrário, é a morte, erro seu, a culpa foi sua, “ilusão de ótica que conduz ao tiro de pistola fatal”. Simbolismo esse que evoca os tempos do romantismo a exemplo de Castro Alves, que entra em depressão e se acidenta atirando no próprio pé quando Eugênia Câmara (atriz portuguesa que abandonara o marido empresário teatral e filha em Portugal para viver com o poeta de 19 anos em Salvador) dá sinais de que irá abandoná-lo após cinco anos de apaixonada convivência. Gangrena, tuberculose e ciúmes mataram o poeta aos 24 anos.
Para Stendhal, a fantasia é a essência do amor. Nós nos apaixonamos por deuses e deuses de nossa criação, nunca vistos com clareza. Sequer conhecemos as forças que nos impelem para eles, mas sempre estamos predispostos a amá-los.
Ouçamos o que outros aficionados pelo tema do amor declararam e constatem a torre de Babel que estamos construindo. Cambiemos para Jose Luiz Borges, grande escritor do século XX, sempre apresentado como intelectual frio, segundo nos conta Alberto Manguel, argentino naturalizado canadense. Manguel, editor, resenhista, revisor, tradutor, acabou de lançar seu segundo livro – “Uma história da leitura” -, apaixonante relato sobre a literatura. Avesso a teorias e academicismo, Manguel revela que Borges sempre buscou a mulher ideal; que, ao longo de sua vida, se apaixonou muitas vezes, sempre nos lugares errados. Tentou ser não apenas um escritor, mas um homem de ação, um aventureiro. Para encontrar as mulheres. Através da escrita.
Se Borges tivesse nascido 30 anos depois poderia ter tomado conhecimento do trabalho realizado pela psicóloga Sueli Engelhardt, em vivências terapêuticas, cujo tema é “A Escolha Certa do Parceiro”. É diferente da escolha do parceiro certo. Ou seja, o que norteia suas escolhas, sempre para aquele mesmo tipo, o mesmo gênero de personalidade. Que você não agüenta mais.
A psicanalista Silvia Alexin Nunes discorreu sobre a construção das identidades feminina e masculina: cada homem e cada mulher é um indivíduo singular que só pode manter uma relação através da negociação de grandes e pequenas diferenças. Complexo, não? (Acordo entre as partes).
Alcione Araújo, que escreveu Malu Mulher na TV, afirma que há uma extraordinária insatisfação da mulher com o homem, que deseja transformá-lo naquilo que ela quer que ele seja ou então, ele não é nada na vida dela!
Por outro lado, acrescento que os homens estão inseguros, pois graças à lógica e tirocínio de que tanto se orgulham, têm perfeita noção da perda de substância de sua personalidade diante da nova mulher, com sérios reflexos na arte da conquista e sedução da mulher, arte essa outrora poderosa.
O psicanalista João Alberto Legey desabafou: vejo homens e mulheres trocando de papéis, mas mantendo as mesmas estruturas de relação. De poder. A mulher vem me impor o desejo dela e eu, como a mulher antiga, tenho que calar a boca, senão crio problemas.
Repararam no painel tecido pelos chamados especialistas do amor? Positivamente estamos em estado de guerra não declarada. Daí eu ter querido examinar como o vocabulário de emoções incorpora expressões novas ou muda o sentido de palavras antigas. Na Grécia antiga, era uma emoção associada aos deuses. Na Renascença, é associada à culpa. Em nosso tempo, é vinculada a diferentes formas de relações sociais. E é aqui que eu volto a meter minha pá nessa discussão para não mais sair.
A primeira impressão que me vinha à mente é que para debater relações entre homem e mulher seria mais apropriado fazer uso de ensaios, críticas e teses. Mas para que tanta cerimônia se o amor se mete quando não é chamado sem pedir licença a ninguém? Tal como Manguel, não sou chegado a academicismos, nem engajamento em proposições que terei de provar sua eficácia na prática. Parafraseando Cristina da Costa Pereira, na sua coluna Ler é Refletir, na Folha de Santa Teresa, o ficcionista, dentro dos seus limites literários, exprime sua vivência, sua visão de mundo, seus ideais, sem querer nos provar nada, de forma deliberada. E às vezes até acaba provando.
Rastreando o ideário de alguns contos percebi que há um elo entre eles que desenvolve o tema do debate: Utopia do Amor Eterno. De forma inconsciente, desenrolei essa temática numa seqüência de contos escritos ao longo de 6 meses de 1996, que vieram a constituir 60% do livro ILUSÃO DE ÓTICA. Eis o sumário:
a) Não tem escapatória – Adulto finalmente entende porque criança chora tanto: ansiedade por querer ser incluído dentre os bafejados pela sorte de amar e ser amado nesta vida. Chora de medo por saber ser difícil substituir o afeto e o desvelo da mãe pelo amor ideal tão almejado durante o trajeto de vida. Não tem escapatória: viver só faz sentido se houver amor.
b) O declínio da lua-de-mel – Os rituais concorreram para desprestigiar o amor eterno. Primeiro, o pecado original, depois a virgindade. Agora a lua-de-mel deixou de ser o rito de passagem para concretizar a utopia do amor eterno. Não é mais necessário esperar esse luxurioso momento para aprender a conviver com quem já se ama. Os inocentes que cultuam a lua-de-mel, tal como nos tempos dos espartilhos e do paletó e gravata, não se aperceberam de que a lua-de-mel é a antecâmara da convivência estreita e na justa medida para saber se os dois se querem ou estão representando para o Pinóquio julgar.
c) Promessa para um príncipe encantado – Mulher dividida entre o cotidiano insosso com o marido e o resgate do prazer com o amante, percebe que o amor ainda não se faz presente em sua vida, permanecendo a ânsia pelo desconhecido e imaginário. Reza por um amor que ela continuará buscando.
d) Romeu e Julieta na sobremesa – Sedução e fascínio podem levar o aflito desejo de encontrar o amor inédito e singular a enveredar por descaminhos. Subjugando quem não pode escapar de si mesmo e da teia com a qual se deixa envolver. Por não saber onde colocar seus desejos, homem se apaixona por mulher rica, auto-suficiente e viciada e, no afã de se livrar dela, chega a apelar até para a falecida mãe. Não há como ajudar ou prestar socorro a quem precisa descobrir por onde recomeçar.
e) A brasa – Empurradas pelo desespero de ver o tempo passar sem nada ter construído, duas mulheres sofrem para tornar reais antigos sonhos de amor. Mas como, se os homens são incapazes de entrar em contato com a alma feminina? A tendência é de viver se repetindo, continuar a viver da maneira a que estavam acostumadas. Se hesitar em se transformar, você corre o risco de ser despejado do seu comodismo.
f) Ciclone imprevisto – Correspondência entre duas pessoas que nunca se viram revela um amor que transcende os limites de tempo e espaço, acendendo inesperadamente o rastilho de pólvora que arrebata os amantes, um em direção ao outro, para viver a utopia.
g) A utopia do amor eterno – O ser humano carrega o seguinte conflito: o desejo de viver o amor mais sublime, revestido de lirismo e pureza, com a chama da união sempre acesa; em oposição à estúpida realidade das relações possessivas. A idéia do amor eterno é escravizante? Esvazia a possível magia do casamento ou do dia-a-dia? Às vezes as questões sobre o amor nos impedem de vivê-lo, de simplesmente amar, sem complicações. Como conciliar amor eterno com efêmeras juras de amor? Qual o verdadeiro amor afinal? Eterno é o amor ou a busca? O amor acaba se transformando num Xanadu, fora do alcance dos amantes. Pois bem, seria o fim da utopia do amor eterno de Romeu e Julieta?

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Antonio Carlos Gaio
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