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CENA 1 – A GUERRA CIVIL QUE NÃO HOUVE

O golpe no dia 1º de abril de 1964 não foi mentira conforme se costuma fazer troça nesta data. Nem tampouco um gracejo a aguardada guerra civil que acabou por não acontecer, de igual forma, na Batalha de Itararé.
O dia amanheceu com uma chuva fina que apenas umedecia a Avenida Rio Branco. Das janelas do Clube Militar (na esquina da Avenida Rio Branco com Rua Santa Luzia), no quarto andar, se podia ver a multidão que se concentrava na praça Cinelândia gritando palavras de ordem em apoio ao governo de João Goulart. A Rádio Mayrink Veiga, que apoiava Jango, transmitia ao vivo, através de um sistema de alto-falantes distribuídos pela Cinelândia, cada notícia de resistência ao golpe. A multidão, em delírio, queimava bandeiras americanas e agitava bandeiras vermelhas.
O Clube Militar era o centro propagador do golpe. Seu presidente, o Marechal Augusto Magessi, mandou distribuir na Cinelândia um panfleto editado em mimeógrafo a álcool, que pregava o apoio ao golpe nos seguintes termos:
“Povo carioca / Toda Marinha de Guerra do Brasil, nossa gloriosa expressão em todos os tempos, está inteiramente atuante no sentido da moralização das Forças Armadas, ultrajadas pelo governo João Goulart / Já saíram, com missões relevantes, quatro dos seus navios e um submarino. Toda a Esquadra pronta a levantar ferros / A valiosa Força Aérea também está coesa tendo os seus aviões prontos a decolar, a qualquer momento / O general comandante do IV Exército prendeu Arraes e mandou o vice-governador assumir o governo de Pernambuco / Entre 16 e 17h de hoje deverá entrar na Guanabara a coluna Kruel / Viva o Brasil unido e forte!”.
O panfleto caiu como uma bomba na praça tomada por estudantes e trabalhadores, além de estivadores do cais do Porto. A que se seguiu uma batalha campal que desmente a versão de que o golpe foi feito sem derramamento de sangue, sem um único tiro. A velha tônica da História do Brasil em abafar o trucidamento do povo pelas autoridades. Para, no lugar, realçar a capacidade ordeira, respeitadora e cordial do brasileiro. Mais uma farsa num país politicamente enfermo com as disparidades sociais, assim como não houve em 1964 uma revolução tal como os militares insistiram em chamar o golpe. Fazem-se revoluções por ideais, em nome de uma doutrina. Mas foi apenas um movimento para derrubar João Goulart sob o pretexto do comunismo estar desembarcando. Um movimento contra e não em favor de alguma coisa. Destinado a corrigir, não a construir algo novo, e isso não é revolução.
O povo, indignado, tentou invadir o Clube Militar em retaliação. A qualquer momento poderia chegar ao Estado da Guanabara a coluna do general Kruel. Com um revólver 45 na mão, um coronel do Exército deu o primeiro tiro, que acertou na testa de um homem negro e corpulento. Ele caiu morto na hora. O que bastou para começar o tiroteio, com os populares tentando derrubar a porta de entrada e os militares atirando das janelas. O marechal mandou desligar o sistema elétrico e os elevadores deixaram de funcionar. A multidão corria para todos os lados fugindo das balas que zuniam à procura de um corpo para feri-lo de morte. Muitos reagiram fazendo uso de pedras para quebrar as janelas do clube. As ambulâncias do Hospital Souza Aguiar iam e vinham levando os feridos. Num conflito dessa ordem, ou você se esconde para evitar morrer, ou enfrenta a situação. Os militares atiravam até descarregar as armas. Recarregavam os tambores e tornavam a disparar, só parando quando gastassem todas as balas. A situação piorou com a chegada dos tanques e com o reforço do I Exército. O povo não desistia, gritava “Morte aos gorilas!” e atirava pedras arrancadas do calçamento. A Rádio Mayrink Veiga tinha sido invadida e tirada do ar. Com um megafone, um tenente mandou que a multidão se dispersasse, pois a “revolução” já era vitoriosa e não adiantava resistir. Como o povo não obedeceu, a carnificina tomou conta da cena. Uma rajada de metralhadora fez tombar dezenas de uma só vez.
Lembrei-me de Domingo Sangrento, massacre que aconteceu em 9 de janeiro de 1905 em São Petersburgo, no crepúsculo do império russo, quando milhares de esfaimados e desempregados marcharam com suas famílias em direção ao Palácio de Inverno, residência do Czar Nicolau II, para reivindicar melhores condições de trabalho e salário mais justo, sufocados pelas horas extras que os donos das fábricas forçavam os trabalhadores a cumprir e clamando para reduzir a jornada de trabalho para oito horas. A proverbial ausência do czar, retirado no dia anterior, liberou a Guarda Imperial, disposta ao redor do palácio, a conter a bala 3 mil que avançaram, dentre 80 mil pessoas que protestavam. Dispararam diretamente contra a massa para dispersá-la. A matança foi generalizada e a neve ficou vermelha, com o sangue de homens, mulheres e crianças. Os soldados haviam sido embriagados para perder o escrúpulo.
Portuários e estudantes não desistiram, recuaram para depois voltar com suas bandeiras. Bombas de gás lacrimogêneo começaram a ser lançadas, mas o povo não arredava o pé da praça. Dois civis foram metralhados na porta do Clube Naval. Os tanques passaram a disparar para o alto, um barulho ensurdecedor, mas a batalha prosseguia.
Em Pernambuco, cerca de 200 estudantes gritando palavras de ordem e munidos apenas da coragem de lutar pelo que acreditavam, em favor do governador Miguel Arraes, que seria deposto e preso por sua defesa à reforma agrária, marcharam em direção a uma coluna de militares portando submetralhadoras e fuzis acoplados a tripés, apontados ameaçadoramente para eles. Os tiros desfechados os levaram a se embolar uns nos outros, em ato reflexo de defesa, porém a morte foi instantânea para dois deles.
Enquanto isso, a população de Copacabana saía às ruas em verdadeiro carnaval, saudando as tropas do Exército com chuva de papel picado caindo das janelas dos edifícios, dando vazão ao contentamento por temer o caos de uma guerra civil que estaria por vir. A caminho de observar as ondas do mar e tomar uma cervejinha, cidadãos apolíticos comentavam que a ditadura seria um mal necessário levando em conta o que se avizinhava.
Rafael e Túlio lá estavam atendendo a um pedido de socorro de seu amigo Alberto Camu para que o salvassem de sua família de militares, que abriu as portas de seu apartamento defronte à praia de Copacabana para comemorar com champanhe francesa a restauração, segundo eles, da verdadeira democracia, livre da república sindicalista e do nefasto populismo.
Rafael se identificava com o discurso de Túlio com embasamento marxista, menos como apologia ao comunismo e mais como um ataque impiedoso aos privilégios dos mais abonados, colhendo as benesses de uma vida mais vantajosa e confortável, enriquecida por regalias, considerado um mecanismo compensatório a que faziam jus face à pouca instrução reinante induzir os pobres a votarem em candidatos populistas, que explorariam sua boa-fé. Menos cultura, menos sabe votar; a aversão aos nordestinos; a segregação dos serviçais em favelas e na periferia das capitais, situação que pouco evoluiu desde a abolição da escravatura. Mantidos assim pelo uso e costume dos que estão no poder, a serviço dos antigos barões de café, capitães de indústria e coronéis do sertão.
Os ricos representados por uma síntese de todas as forças díspares que apoiaram o golpe: liberais conservadores, conservadores arcaicos, liberais-internacionalistas, corporativistas-estatais, anticomunistas radicais. Rafael lembra que ficou faltando no listão o bloco do Carlos Lacerda, então governador do Estado da Guanabara, que participou do golpe para se sagrar ditador do Brasil.
Por uma fatalidade histórica, começou em 1964 no Brasil um período de supressão das liberdades públicas precisamente quando o mundo vivia um dos períodos de mente mais aberta da História da Humanidade. Atestam a contestação ao establishment, a extinção do colonialismo, a Teologia da Libertação, o confronto entre o capitalismo e o comunismo, o advento da pílula anticoncepcional e a liberdade sexual, paz e amor, e a psicanálise.

Antonio Carlos Gaio
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