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BIP BIP

O PIOR DIA DE MINHA VIDA

 

 "

O dia do AI-5. O ato institucional da ditadura militar que fechou o Congresso. Recrudesceu a censura à música, teatro e cinema. Pretensioso no confisco ao nosso direito de pensar e limitado na educação moral e cívica. Lançou sobre a democracia a culpa da corrupção. O sinal verde para a milicada seqüestrar, torturar e matar sob o pretexto de acabar com a raça dos comunistas. Mas quem se calou para todo o sempre foi o general Costa e Silva, signatário-mor do ato, que foi ao fundo do poço no silêncio de uma trombose cerebral.
Previ no dia 13 de dezembro de 1968 que o regime iria perdurar por mais de 20 anos. Enchi-me de indignação e raiva. Resolvi sair ao léu pela Avenida Nossa Senhora de Copacabana, que já nos tinha brindado com uma improvisada Marcha pela Família com Deus pela Liberdade, em comemoração ao golpe de 1964, no dia 1º de abril.
Dei de cara com o Bip Bip, na Rua Almirante Gonçalves, que inaugurava uma nova era para boêmios, sambistas, compositores e revolucionários frustrados. Pedi uma batida de limão para rebater o bode do udenismo infestado no poder. Os mesmos golpistas que tramaram contra Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e Jango Goulart. Capitaneados pelas toupeiras dos generais que nos tratavam como seus cavalos, traçando com os soldadinhos de chumbo a estratégia de um Brasil grande – quem não gostar, deixe-o.
Olhava pro fundo do copo e não via solução. Eu era de esquerda sem o saber. Não integrava diretório acadêmico. Não tinha o conhecimento e a consciência de companheiros e amigos diletos que me empolgavam nas discussões eternas sobre a Guerra Fria. A Cortina de Ferro contra a canalha capitalista. A reforma agrária no Brasil. Cuba, o máximo, alfinetando os americanos na crise dos mísseis. A União Soviética deixando todos atônitos por realizar o sonho de tornar o ser humano igual, dizimando as classes sociais. Estudei no Colégio Mello e Souza e aprendi até russo.
Bebia, bebia, olhava pro fundo do copo e só via em mim um coadjuvante, sem coragem de se tornar o ator principal. Luta armada nem pensar. Apenas dei meu apoio a Túlio Roberto Cardoso Quintiliano, asilado na Embaixada do Chile, que me proporcionou um curso de verão sobre a exploração do homem pelo homem. Despedi-me de Túlio, vascaíno que entregou sua alma a uma causa.
O que me levou a emputecer e a romper com a minha namoradinha burguesa, que não queria me dar. No cinema, com os dedos, sentia sua boceta molhada, enquanto a língua não parava um instante sequer à procura de um ponto não explorado. A safada chegava até a desmaiar quando minhas mãos invadiam seus peitos, que falavam melhor por aquele primor de alienação. Mas o pior na filha da puta é que ela se declarava apolítica em pleno regime nazista, se fazendo de cega, surda e muda à vida de estudantes universitários, gente como a gente, arrancados de nosso convívio. Não assumia uma posição sequer, só se eu me casasse com aquele rabo.
Vá tomar no olho do teu cu, eu disse pro copo. Apesar de já estar tonto, percebi pela indiferença dos freqüentadores do Bip Bip o silêncio imposto pela ditadura que agora se propagava. A consciência ameaçada pelo fuzil e o desbaratamento da geração mais brilhante do século XX.
Eu era um indefeso economista recém-formado, em meio à lei da oferta e procura, saudada como a salvação da lavoura pro Brasil pra frente. Roberto Campos e Fleury, cada um matando a seu jeito. O Estádio Nacional do Chile, o cemitério dos amigos inesquecíveis. Com quem bebi no Lamas os filmes do Cine Paissandu, apaixonado pela nouvelle vague, o realismo italiano, Godard, Bunuel, Fellini, Antonioni, Visconti, Truffaut, Pasolini, Scola, Bertolucci, Mastroianni, Loren, Gassman, Tognazzi, Deneuve, Belmondo, Delon, Moreau, Montand, Picolli, Bardot. Um time de primeiríssima classe.
Dessa vez, eu olhei pro fundo do copo e atravessei o tempo. Eu aqui estou no Bip Bip, vencido o pesadelo, inserido na democracia que imergiu os torturadores do regime fascista num constrangedor silêncio, de mãos atadas; a mão invisível do estado militarista que os acobertou recolheu à sua insignificância. Hoje são ilustres desconhecidos, sujeitos aos constantes assaltos nas ruas, fruto de sua herança maldita, observando um quadro político contra o qual lutaram e assassinaram para não chegar ao poder. Quem dera pudessem morrer para não sofrer tamanha humilhação com a derrota. A Redentora colheu fracasso nos seus propósitos, só restando a seus defensores cruzar os braços, já que manifestar-se em passeata não é do seu feitio.
Já começo a enxergar luz no fundo do copo.

Antonio Carlos Gaio

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