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ZUMBIS

Sempre que o assunto morte vem à tona, as pessoas imediatamente associam a envelhecer, a perder poder, a faltar fôlego, disposição, energia, a perder de vista a fonte da juventude. A perdas e danos. Ninguém quer saber de morrer e continuar vivo, o que importa é deixar de pertencer a esse universo. Pois se vivemos a contradição do corpo oprimir o espírito, enquanto o mundo vive a cultura do corpo. O sentido da morte, eis o mistério, só vivendo a nossa própria vida, aperfeiçoando e fazendo o melhor de si, para tentar descobrir.
Só a obra de tua vida interessa. O que irá desempenhar. O autor é o personagem. Com sorte, você adivinha o que não sabe. A vida inteira é demasiadamente curta. Uma história nunca termina. Ela continua depois de você. A obra é sempre inferior aos sonhos, o autor nunca se realiza, embora possa recomeçar sempre. Se você for bastante honesto consigo mesmo, lembrar-se-á de sonhos que engavetou traindo sua obra, por não confiar na sua mão torta ou no seu coração danado.
Adrienne Shelly, numa profética entrevista, contou que seu pai mandou passear inúmeros agentes artísticos que queriam contratá-la, sob o receio de não querer ver sua filha se atirar pela janela quando atingisse o estrelato como atriz. Não bastou crescer em sua carreira artística, ela sentia que sua vida podia ir embora a qualquer momento, daí se irritar com os atrasos na produção do filme “Garçonete”, uma metáfora de sua vida: sobre mulheres tentando encontrar seu lugar no mundo.
Nem mesmo era a garçonete principal, mas escreveu e dirigiu como as mulheres se encontram desesperadas com a falta de opção no mercado: os homens estão conformados por aceitar até onde podem ir no amor. Um beco sem saída que as leva a se refugiarem no buraco de sempre. Na fantasia, que as conduz à mais completa abstração e gradativo desconhecimento do que estão fazendo aqui, senão terem filhos e criarem de outra maneira. 
Shelly foi assassinada antes de o filme ser exibido e sem poder vibrar com o sucesso de sua tese, deixando órfã sua filha de 3 anos. Quando grávida, sentia no bebê a algema numa existência não desejada, mas a criança emergiu de seu útero e libertou-a da prisão. “Garçonete” foi parida durante o período de gravidez e deixou-a orgulhosa, tanto que, no epílogo, as duas viriam a aparecer juntas, passeando felizes, em um plano filmado que não pertencia a esse mundo.
O filme ficará irremediavelmente ligado à morte cruel de Adrienne Shelly: foi encontrada enforcada no chuveiro de seu apartamento. Um imigrante, com medo de ser deportado, preparou a cena do suicídio. Desfechou-lhe um soco, que não a matou, quando ela ameaçou chamar a polícia diante do barulho de suas marteladas na parede vizinha.
Foi-se um espírito que assustava com sua ironia naturalista, que costumava vir à baila com insistência, em busca do amor conto de fada, um vínculo com a vida, por não encontrar sentido na morte anunciada. Provocava um nó na garganta nos que não conseguem domar esses espíritos indômitos. Tamanho grau de sinceridade desperta a violência em amordaçar uma voz que não teme se defrontar com zumbis que atravancam o caminho dos que precisam ver a luz, verdadeiros espíritos atormentados que se põem no meio dos que querem avançar e seguram a não mais poder a evolução.

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Antonio Carlos Gaio
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