Diz-se de um vetor como a molécula de ADN circular, à qual um gene pode ser adicionado, de tal forma que a célula passa a apresentar as características contidas no gene adicionado e a transmiti-las para as gerações subseqüentes. Conectados a essa cadeia genética, os traficantes se encontram no mesmo rumo dos garimpeiros na Califórnia do século XIX, na corrida em busca do ouro. Agora que descobriram o veio, não irão se intimidar e assassinarão quantos juízes forem necessários, visto que o ouro em forma de pó recuperou sua auto-estima para se inserir na sociedade e ser respeitado. Ao menos, temido, para ser admirado, ao melhor estilo de Osama bin Laden.
Vencida essa barreira, não aceitarão mais a pecha de zé mané, refugo da sociedade, de barrados no baile. Não mais irão ceder nem recuar, seja qual for o governo que se apresentar, não importa se esquerda xiita, esquerda paz e amor, direita paulistana, direita do acarajé, perdidos em cima do muro, ou crentes. A corrupção como uma hemorragia que não estanca os autoriza.
O crime se organiza enquanto não se unifica a Polícia Civil e a Polícia Militar, e as Forças Armadas discutem o sexo dos anjos, apenas entram em campo de batalha se o inimigo cruzar nossas fronteiras. O que obrigará o Brasil a falar o mesmo idioma entre os três poderes, virar um jogo que está perdendo e decodificar a esperteza em inteligência. Sem querer, o narcotráfico empresta sua valiosa contribuição para tomarmos vergonha na cara ao não dar guarida a demagogias baratas no enfrentamento, além de inibir rebotalhos do Legislativo, tem grampo na parada!
Os traficantes contribuem também para a taxa de mortalidade, que cresce na mesma proporção com que embalam o pó, contratam planos de saúde e se acautelam nas reservas de sepulturas adequadas à importância com que ingressam e se estabelecem na sociedade. Como qualquer homem de negócios, a despeito de a Justiça e a Polícia elevarem sua taxa de risco na iniciativa.
O traficante Uê terá seus restos mortais transferidos de uma cova rasa para um jazigo perpétuo da ala mais nobre do Cemitério do Caju. Em terreno de 3 m² coberto por mármore especial ao custo de quase U$ 20 mil, encimada por um anjo da guarda de bronze, na nobre companhia do Barão do Rio Branco.
O Barão foi o que se chama de vencedor nato. Árbitro de pendengas fronteiriças que delinearam o tamanho do Brasil, como as das Missões, do Amapá, a solução para o Acre, tudo o que tocava, virava orgulho pro Brasil. Jogando para debaixo do tapete as atrocidades sem precedentes dos tempos de Floriano Peixoto, dos degolamentos e execuções sumárias da Rebelião Federalista, o massacre de Canudos, a suspeita perturbadora de que estávamos construindo uma republiqueta de bananas, e a onda nostálgica de que o Segundo Império não fora a regra mas a exceção. O povo se agarrou às vitórias de Rio Branco como cinqüenta anos depois lançaria mão das glórias esportivas para banhar-se em auto-estima.
No entanto, o ganho na auto-estima não se fez acompanhar, ao longo dos últimos quase cem anos, na distribuição de renda e no bem-estar da sociedade, desviando a coragem e a iniciativa para a quebra do compromisso de viver em paz; a média de mortes por homicídios dolosos no Rio de Janeiro é de 34 por dia, em São Paulo chega a 50. A ponto de corroer a imagem do Exército em que militares são acusados de violar o sigilo de concurso para sargento, vendendo gabaritos a candidatos e intimidando promotores, igualando-se a marginais.
“Recorda-te que tu és pó, e em pó tu hás de tornar”. Quero ver quem é rico ou pobre, lembra, o que tanto nos esforçamos para esquecer, o nosso ministro-filósofo Gilberto Gil. Mas será que não tenho o direito de me indignar com a vizinhança mal falada de meus ancestrais sepultados? Pelo fato de estar morto, não vale os direitos invocados para os vivos, expulsando as más companhias? Mas se espantar o traficante daquelas bandas, eu vou ser morto e dar de cara com o bicho que irá me cobrar a discriminação. Só não poderá me matar de novo.
E para que tanto esnobismo e elitismo em questões do reino dos mortos? Para não ser ameaçado em vida no Dia dos Finados? Face à tendência do clã do traficante frente à morte, vai daí que me deparo com a parentela deles chorando mais uma vida perdida. Dou azar de pegar aquele mau humor de cão louco. Em querer apagar o primeiro cidadão com os bofes de justiça e paz.
Quer dizer que não tenho direito a escolher minhas companhias nem na vida e muito menos na morte? É melhor assentar a poeira e viver entre o bem e o mal? Que má vontade é essa com a recuperação de auto-estima, se ainda não encontramos uma outra fórmula para resolver nossas dissensões?
O que de fato incomoda é ter como companhia um bandido ou guerrilheiro armado, ao lado de um barão vitorioso que redesenhou nossas fronteiras para caber um povo moreno cada vez mais miscigenado, sem dialetos e disputas religiosas, com espaço suficiente para todos nos acomodarmos e sairmos da fase de extrair o fruto, pendurado na copa das árvores, por ser abundante e não nos obrigar a pensar em mais nada, tornando a lei do menor esforço, garantido o leite das crianças, como o ponto de partida para o processo de acumulação de riquezas, vantagens e privilégios. Uma característica colonial que perdura. E multiplica, como o milagre dos pães, fiéis adeptos de uma ideologia que suga e sangra o Brasil.
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