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BOLA DE CRISTAL

Sylvia nasceu com uma predestinação: de enxergar através da retina do homem como se fosse uma bola de cristal. Desde pequena, se apercebeu de que a seiva do sangue é a seiva do amor, envolver-se e enamorar-se por alguém sob medida vai miná-la em lágrimas e cicatrizes, uma arte como tudo o mais, mas que parecerá infernal de tão real, uma prisão se restrita a um recôncavo ou concha do mar. O que mais a apavora é o zumbido de homens incompreensíveis, como uma turba muçulmana, que, sozinhos, nada representam, apenas trapos escondendo fantasmas, mas juntos, valha-me Deus! Desconjuro! O inimigo figadal da harmonia.
De noite, eles saem com suas garras à caça. De algo para amar. Que Sylvia constata, atônita, adormecido nela. Bela, em suas faces pálidas, inquieta-se, se tem de ser assim para agitar o coração. Se o mesmo beijo de amor que arrebata converter-se-á em pesadelo, no beijo traiçoeiro que irá petrificar o desejo. Alma atormentada não combina com sereia que escapa para o fundo do mar em busca de águas límpidas que regeneram. Nascera procurando cigarros, desconfiada. A testa enrugada de concentração, imersa num triste diagnóstico, exato em número, forma e partes: o homem nascera para roubar a luz alheia, exceção aos iluminados e humildes, conformados no máximo e no mínimo.
Sylvia já sentia de longe, ao se apaixonar, que seu homem iria aprontar antes que ele se denunciasse através de algum gesto desavisado. Ao menor sinal não cabe o maior desprezo, fazia parte de sua psiquê. Seu olhar já persegue, controla e prevê o rumo dos acontecimentos na relação. Ela só se sente segura quando ele manifestadamente se afirma feliz ao seu lado.
O amor à primeira vista. A paixão queimando por dentro como uma úlcera que irradia o amargo a querer ocupar o espaço que lhe cabe de direito, o teste pelo qual passará a relação. Se fazer de rogada seria um pecado. Para quem atira pedras na sua janela somente para ver seu rosto lindo realçado pela luz do abajur e apenas acenar. O encantamento, quando fulminante, exige que a lua-de-mel se inicie logo na primeira noite.
Ted era um homem de não mais delongas, de não se pautar por regras. Dizia o que pensava e se insinuava como um ser instigante que desencadeava uma reação. Soava como uma provocação para a outra. Que correspondia ou devolvia na mesma moeda, alimentando a provocação, se assim a entendia. No entanto, ele não saía do seu lugar.
Blasé, descomprometido com a neurose dos outros. A interagir num jogo contido que deixa dúvidas, mas não fere suscetibilidades. Pois não se aprofunda nem paga pra ver, estabelecido confortavelmente num nível onde a fantasia entra como proteção para se preservar de ter que assumir uma postura transparente.
Porque é assim que as relações se estabelecem, sem termos o autoconhecimento necessário, nem um detector de mentiras. Parece que somos pinçados ao léu para nos juntarmos em espírito e carne. Um condicionamento que a enlouquece por conta de uma visão merecedora de canonizá-la como santa. Ela sofre e se martiriza em silêncio, pois quer ver o real, não quer se enganar com o homem que amará acima de todas as coisas. Mas também não quer ser a vítima da compaixão de todos que a vêem como uma desequilibrada, à mercê de homens que sabem o que fazem. Seguros de seu trajeto.
Na verdade, todas as pessoas dão sinais do que são. Contudo, é mais fácil fingir que não existem diferenças, ou que será possível conviver com elas, ou até assimilá-las.
Ted é uma pessoa envolvente por natureza, não elabora o seu tipo, não cultiva o gênero, embora para o universo feminino seja o sedutor nato, a despeito de não precisar mover uma palha pela causa.
Para Sylvia, esse é o tipo de homem que a atrai. Se fosse outro, não se interessaria, na aproximação o desprezaria, no relacionamento o dominaria, na seqüência perderia o mínimo na vontade que restou, e provavelmente repetiria o que ela mais detesta e acusa em Ted – mulherengo.
Mas não adianta, essa questão sempre parte de nós, de Sylvia. Uma estrutura emocional de quem não possui uma auto-estima de sair à rua com o pé direito. Acaba por empurrar o outro para fora de casa. Devagarzinho. Pontuando em comentários sem a mínima importância. Com perguntas a respeito de onde foi e com quem trocou idéias. Quem são suas novas amizades. Ao trocar o horário, inverte o sonho pelo pesadelo. Escarafuncha gavetas, recados mal-traçados, algum dado comprometedor. De tanto procurar a prova do crime, confirma a materialidade da suspeita. Se Ted iria ser condenado de qualquer maneira… melhor tirar proveito da culpa!
Sylvia nasceu escrava da bola de cristal, a mente fotográfica que revela o coração vagabundo que a conquistou e a empurrou para o abismo. Seu desejo de morte, no entanto, é nada mais nada menos do que transcender, de poder renovar-se desse ar contaminado de uma desconfiança louca e avassaladora. Se morte houvesse, seria o fim de um estágio e o início de um novo período superior a essa atormentada vivência terrena.
A vida perde seu perfume, sabor, sua música e expressão, se disciplinados restamos à mercê do medo que elogia a loucura.
Uma mulher orgulhosa, irônica e sensível à raiz, acometida de uma lucidez total e de uma coragem igualmente grande, para enfrentar sua intimidade de uma misteriosa eloqüência poética, combinando desespero enfurecido e altíssimo nível de verdade que o mundo não assimila, não dá guarida, sequer permite. Porque capaz de trovejar palavras secas, como golpes de machado na madeira, sem rédeas, à procura de um rumo que a desvie de uma progressiva extinção de personalidade, num bater de cascos incansáveis, sem divisar no fundo do poço que estrelas fixas ensinam o caminho das pedras a governar seu destino. Longe desses inesquecíveis homens por quem se apaixonam e que marcam, com ferro em brasa, sua felicidade.

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Antonio Carlos Gaio
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