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HÁ QUE ESTENDER A MÃO

Sou basicamente pessimista, cético e descrente, quase na fronteira da melancolia.
Eu não tenho filhos e não me casei. Tenho alguns relacionamentos aqui e ali, mas optei por viver para o meu ofício. Sei o que estou fazendo e me dedico integralmente. Eu me alimento de minha crise interior e isso não me enlouquecerá. 
Talvez eu ache a vida simples demais para eu caber nela. As minhas questões são mais profundas do que o cotidiano que eu percebo. A vida, além de respirar, passear e tudo o mais, não me oferece nenhum desafio além da própria existência. É um pouco linear demais para o meu gosto. Tanto que preciso de carvão para, depois de aceso, aquecer minha alma. Já que nada mais me interessa senão o meu ofício. Sinto-me como um recluso. Não tenho mais ido a lugar nenhum. Não quero ter Twitter, nem ser virtual, relacionando-me com três mil pessoas. Se mal fiz cinco amigos até hoje. Quero endossar minha imaginação sem fazer concessões, onde eu possa existir com todo o meu delírio e alucinação. Dane-se se o mundo ficou totalmente superficial!
Minha mãe morreu e com o luto senti uma solidão muito grande, percebendo que eu deveria viver ainda mais de acordo com as minhas convicções. Dá-me vontade de trazê-la para o palco e revelar tudo o que gostaria de fazer, todas as personalidades que desejaria encarnar e explicar-lhe que teatro é a realidade ao contrário: tudo o que é verdadeiro está no escuro, e o que é falso, está na luz.
Eis que, enaltecida a escuridão, o sinistro se fortalece. Portas e janelas começam a bater e a luz a piscar no escritório. Chamo imediatamente meus cachorros para se postarem em torno de mim, já que o animal sente os espíritos rondando. Aguardo a reação deles, sejam cães ou espíritos. Não me contenho e os provoco instigando-os a falarem comigo, se realmente transcendem e carregam consigo a Luz. De repente, a luz queima. Tive que trocar a lâmpada. 
Ninguém irá acreditar em tamanha tolice. Hoje ninguém acredita em mais nada… 
Começo a pensar no medo que o artista tem da morte perante as luzes no palco, que momentaneamente o cegam. Não é apenas o receio de não se tornar eterno e ser esquecido. É porque deixou de elaborar e construir sua própria arte. O salvo-conduto para salvá-lo e redimi-lo dos inúmeros tropeços a que estamos sujeitos nessa precária existência. Quando é a síntese do grande espetáculo ao qual não poderemos nos furtar de dar o ar da graça e presença, mesmo porque não nos é perguntado se desejamos ingressar e participar. É aqui chegar e evocar o seu melhor, sem se achar mais profundo do que os outros ou com dificuldades para se encaixar num mundo superficial, por não se permitir ser atravessado pelo sagrado onde não existe o sobrenatural e se dispor a estender verdadeiramente a mão a quem irá abrir-lhe as portas. Para ser humano.

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Antonio Carlos Gaio
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