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JOÃO NINGUÉM

João Ninguém pede licença para existir. Nunca se expõe ao perigo. Inimigos, nem pensar. Opinião, se as tem, não mostra a cara. Apenas transmite suas idéias por e-mail, de roldão, entranhadas em pensamentos de outrem. Não tem ideal na vida, no máximo um boêmio ilibado. Se for abandonado pela esposa, tanto melhor. Se considerar traído, fora de cogitação, há sempre um ombro para se debruçar e chorar que nem um bezerro desmamado. Zoar no seu ouvido não surte efeito, tamanha a quantidade de cera que se acumula.  Não se concentra em nada que diga respeito a seu trabalho, antenado no que gira ao redor de sua imaginação.
Sempre com a cabeça longe, está mais perto do que se imagina, pensando em um amor sincero que, de antemão, sabe que não encontrará. Aiii! Bateu na testa. Se tivesse autonomia, gritaria, mas já nasceu escravizado, o pobre do coração. Só com uma nova abolição pra trazer de volta o vigor de um escravo que se rebela, e poder dizer que isso eu não quero pra mim.
Não é que o mundo o condene, mas faz pouco caso de quem lhe falte um destino para inspirar um romance. Sua imagem sem sal não colore a mente, o molho não é de dar água na boca. João Ninguém sequer inspira pena, ao contrário, ignoram se passa fome ou se tem sede de amor.
A filosofia, ainda que de botequim, o acode na fraqueza e se transforma na muleta que o sustentará no fingir-se indiferente, aparentando que é um bon-vivant, até como meio de defesa para ninguém zombar de sua figura um tanto ou quanto enigmática. Já se perdeu de si mesmo e procura em vão sua alma.
Para que se meter numa parada que pode acabar num toque de silêncio? É melhor não se achar nos meandros da burocracia do que se propor a encontrar no labirinto uma saída. Tem a sensação nítida de que saiu de moda e fechou as portas.
É nesta hora que João Ninguém goza uma felicidade mórbida pra cima dos que ostentam luxo e vaidade. Não sacam a armadilha de que são presas fáceis de uma vida ilusória, enquanto João Ninguém é apenas um escravo de seu ser e não se incomoda com que digam que a sociedade é sua inimiga:
– Quanto a você da aristocracia, que tem dinheiro, mas não compra alegria, hás de viver eternamente sendo escrava dessa gente, que cultiva hipocrisia.
João Ninguém é um bom samaritano, incapaz de tirar a vida de insetos, principalmente se for ratazana, em se tratando de amigos que vestem uma couraça para virar inimigos. E lá está ele para juntar os cacos de coisas que vão e vêm, a botar os outros pra cima, sorrindo, a levar a vida, realçando a arte no burburinho de gente esperançosa em meio a débeis mentais, cuja única função é atestar que João Ninguém nunca existiu. Por ser ninguém, provavelmente um sonho que logo desaparece ao despertarmos.

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Antonio Carlos Gaio
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