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O ORFISMO DE MALLARMÉ

Stéphane Mallarmé destacou-se por uma literatura que se mostrava ao mesmo tempo lúcida e obscura. Por isso considerado um poeta difícil e hermético. Seus comentários críticos nas famosas tertúlias literárias realizadas em sua casa, em Paris, estimularam enormemente os escritores franceses a partir de uma visão simbólica e espiritual que se opunha à tradução fiel da realidade e à perfeição da forma, assim como aos artistas da escola impressionista que, com efeitos fugazes de luz e movimento, começaram a vencer as primeiras barreiras do formalismo com enquadramentos originais.
Apesar de desempenhar um papel fundamental na evolução da literatura no século XX, especialmente nas tendências futuristas, Mallarmé morreu em 1898 sem ter chegado a concluir a grande obra de sua vida. Um projeto que ele só revelou em cartas a amigos, que seria a explicação órfica da Terra, submetendo ao domínio do espírito humano, ao seu livre-arbítrio, o acaso, o que vier surgindo, como símbolo da imperfeição de sua incompletude. Órfica por dizer respeito aos dogmas e mistérios atribuídos ao poeta Orfeu, personagem mitológico, em sua seita filosófico-religiosa originada na Grécia do século VII a.C., cuja doutrina pregava a reencarnação da alma humana após a morte corporal.
Orfeu era o músico mais talentoso de que já se teve notícia. Quando tocava sua lira, os pássaros paravam de voar para escutar e as árvores se esticavam para alcançar os sons que se esvaíam no vento. Silenciava as sereias que, com seu canto, surtavam os navegantes fazendo com que suas embarcações fossem de encontro aos rochedos. Até se deparar com Eurídice e apaixonar-se perdidamente por seu encanto e beleza. O que a levava a fugir de seus pretendentes ao não acreditar que falassem a verdade. Eis que uma serpente interrompe sua fuga sem fim e tira sua vida, deixando Orfeu transtornado. A ponto de ir buscá-la na Terra dos Mortos para tentar trazê-la de volta. A emoção na canção tirada por sua lira convenceu o barqueiro Caronte a levá-lo vivo pelo rio Estige. Adormeceu Cérbero, o cão de três cabeças que vigiava o portal de entrada. Aliviou o tormento na alma de pessoas mortas que se julgam condenadas e a presença de entidades malévolas não o perturbou. Embora irritado por ver que um vivo penetrou em seus domínios, a agonia na música de Orfeu comoveu Hades, o rei dos mortos, que permitiu o retorno de Eurídice pelas mãos de Orfeu ao mundo dos vivos. Mas com uma condição: que ele não pusesse os olhos nela até que a luz do sol a banhasse por inteiro. Orfeu tocou então músicas de alegria e celebração trilha afora do obscuro reino da morte, guiando a sombra de Eurídice de volta à vida. Bastou o sol se pronunciar através de tímidos raios,  a ansiedade o levou a virar-se para se certificar de que Eurídice o estava seguindo. Por um momento ele pensou que a tivesse visto, mas logo ela se tornou de novo num fino fantasma, tão perto de sair da escuridão e viver outra vez, pairando apenas no ar um grito lancinante de final de amor. Era Orfeu, imerso em desespero total; havia perdido Eurídice para sempre. O que deu origem ao Orfismo, um dos diversos canais pelos quais a espiritualidade vem se manifestando e procurando abrir nossos espíritos para nos comungar com a divindade. Orfeu, um arauto da espiritualidade. Afinal de contas, ele entrara no Plano Espiritual e voltara. No desencarne, ele encontraria a paz e se reuniria à sua amada Eurídice que, dessa vez, não teria mais razões para fugir.
Três anos antes de sua morte, Mallarmé declara num poema o sonho de construir uma “Grande Obra”, com letra maiúscula. A pedra filosofal que iria remediar os males do espírito ao feitio de uma obra arquitetônica em sintonia com o Universo. Um livro em vários volumes que discorresse sobre o mistério órfico da Terra, que não conseguiu escrever.
Quando Mallarmé pressentiu a chegada da morte, angustiado por não atingir seu objetivo, pediu à mulher e à filha, um dia antes, que queimassem seus escritos – repetindo o poeta Virgílio e o que Franz Kafka viria a fazer. Sobreveio a morte por asfixia; faltou-lhe ar por sua genialidade não ter evacuado e se expressado na “Grande Obra”, embora sua produção literária continue a ser reeditada, transcorridos mais de 100 anos do seu desaparecimento. Ou bem se realiza a grande obra que consagraria o seu ego ou, no papel de Nero, que mande pôr fogo em Roma, incendiando ideias, conceitos, versos, a prosa, palavra por palavra, ponto e vírgula. A mesma frustração que levou Orfeu a invadir o Mundo dos Mortos para resgatar Eurídice, inconformado com a Morte, desafiando-a.

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Antonio Carlos Gaio
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