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O REALISMO SOCIALISTA E A ARTE

Stalin foi um dos personagens mais tirânicos da história da Rússia, rivalizando-se na repressão com Ivan, o Terrível. No ápice de um reinado de terror, os cidadãos acusados de crimes políticos graves eram torturados até confessar, julgados secretamente por tribunais policiais e executados. Se o delito correspondia a um desvio da linha do Partido, o renegado era obrigado a assinar uma confissão negociada com os prepostos da Justiça, que se transformava em peça dos autos hábil para aguardar a morte nos gulag da Sibéria – campos de trabalho forçado com rações de fome e enfermidades endêmicas. Sem contar a prática de enviar dissidentes para instituições psiquiátricas como esquizofrênicos, para evitar julgamentos públicos potencialmente embaraçosos e desacreditá-los como produto de mentes doentias.
As acusações variavam de elogios à capacidade técnica do capitalismo e à sua democracia, ao servilismo em relação ao padrão de vida ocidental. Discordar era um comportamento desviante considerado perigoso e atentatório aos interesses do proletariado, pelo qual o governo zelava. Conta-se que Stalin organizava jantares que atravessavam a noite, em que membros do seu círculo íntimo eram obrigados a comparecer e entornar copiosas doses de vodca sob o sapateado da dança cossaca. Enquanto ele anotava na sua cabeça algumas confidências que vazavam à revelia dos dançarinos bêbados, sorvendo o delicioso vinho georgiano.
Ele não poupou os intelectuais, economistas, historiadores, engenheiros, cientistas, músicos, pintores e escritores, assim como centenas de comunistas estrangeiros que tiveram a infelicidade de se achar em território russo nesta ocasião. Acusados de burgueses direitistas, 20 milhões de pessoas foram enviadas para os campos de trabalho, segundo estimativa moderada, e a maior parte perdeu a vida.
Ele não poupou também os religiosos, os que não abriam mão de sua crença. Pesou na balança a conivência da Igreja Ortodoxa com a degradação moral do czarismo, imersa numa catedral de regalias e assentada ao lado do trono. Um conluio que manteve o status quo do campesinato no analfabetismo, fator que influenciou na demolição do Templo de Kazanski e da Catedral do Cristo Salvador, respectivamente transformadas em mictório público e academia desportiva com piscinas para forjar nadadores que elevassem o comunismo ao pódio nas Olimpíadas.
O peso do passado bárbaro e rude da Rússia voltou a pairar nas esferas do poder e no modo de agir e pensar dos dirigentes. Suzdal, originalmente Convento de Carmelitas, teve sua área de atuação ampliada para presídio e, posteriormente, laboratório para testar armas bacteriológicas, precursoras do Antrax. Stalin mandou as freiras para a Sibéria executando as recalcitrantes. 30 anos antes, Tolstoi fizera jus a uma reserva de cela, previamente preparada, por ofender a fé ortodoxa ao não professar ou não se deixar possuir. A balança oscila conforme o regime, mas o oponente político tem sempre o mesmo destino.
A implacável hostilidade de Stalin em relação a qualquer obra de arte moderna contribuiu para a queda da pintura e escultura russa, de longe os mais ousados e precoces no boom vanguardista, em vertiginosa ascensão desde o primeiro movimento radical de abstração geométrica de Malevitch. Vasily Kandinsky e Marc Chagall já haviam fugido da ortodoxia soviética para conquistar fama no Ocidente com suas formas experimentais nas abstrações puras que acabaram com todo e qualquer elemento realista.
Em 1930, a mão de ferro de Stalin pôs fim a um período de efervescência artística e cultural, acelerado a partir de 1890, traduzindo-se em publicação de centenas de jornais e revistas, poetas vivendo apenas de poesias e Stanislavski revolucionando a técnica de representar. Destrói a vanguarda quando decreta que toda arte tem de ser compreensível para milhões, entra em cena o realismo socialista exaltando as lutas heróicas do proletariado. A arte como instrumento de propagação da ideologia, a divulgar os aspectos morais e sociais do regime, em detrimento de uma estética pura.
A refletir o grau de infalibilidade e sapiência do Partido Comunista, condena-se a abstração e o construtivismo que afetou as artes gráficas e a arquitetura, com seu geometrismo dinâmico a interpenetrar planos que decompõem as formas e desprezam a perspectiva do espaço tridimensional que nos aprisiona. Em seu lugar, a Universidade de Moscou, o Hotel Ukranya, Hotel Moscou e as instalações da KGB, cuja majestade de uma arquitetura opressiva não nega o ato falho fascista que as inspirou. Quem rabiscou na prancheta o imponente edifício-torre do Ministério das Relações Exteriores, seguramente assistiu no dia anterior ao filme Metrópolis, de Fritz Lang. O povo endossa com patriotismo e constrói com suas próprias mãos o fabuloso metrô de Moscou, cujos trens circulam ao correspondente de quatro andares abaixo do nível do solo.
Por estar voltado para o coletivismo e atender às necessidades básicas do cidadão de comer, morar e se vestir condignamente, com direito a escola, saúde e transporte gratuitos, Stalin entendeu que poderia intervir no imaginário soviético face a face com as transformações radicais no seio da sociedade e do indivíduo, por extensão, na escalada da Revolução Comunista. Deixando para trás o imaginário russo pintado com cores tão fortes por artistas descomunais de nomes carregados de “k”, “y” e “v”, que se materializou ao inserir a realidade concreta do indivíduo, traduzida na angústia, no centro da especulação filosófica relacionada ao o que fazer nessa existência.
Contudo, não há como ignorar que em todas as grandes obras de arte, sua universalidade transcendeu tempo e local, sua ressonância lhe conferiu um estranho poder. O que a distinguiu das realizações culturais de outras nações, pois evocou o espírito do povo russo e as nuances que montaram o quebra-cabeça de dimensões continentais, tão bem personificados em Guerra e Paz de Leon Tolstoi em 1865.
Ao se voltar para o eslavofilismo, Dostoievski também exacerbou a crença na Rússia, a salvo da influência corruptora das idéias materialistas do Ocidente, e explorou o remorso em Crime e Castigo para resgatar a capacidade de amar seus semelhantes. O universo escuro e atormentado dostoievskiano denuncia o fascínio pela mente criminosa em Irmãos Karamazov. A liberdade desbragada conduz ao despotismo amoral em Os Possessos, antevendo os regimes totalitários do século XX na única exigência do novo Estado: a obediência irrestrita, todos são escravos e iguais na escravidão.
O brilho da era dourada na literatura russa teve seu correspondente nas artes cênicas. Tchekov reproduz a Mãe Rússia de 1880 e 1890 com uma riqueza de detalhes impregnados de melancolia e impossibilidades nas peças Tio Vanya, Jardim das Cerejeiras e As Três Irmãs, povoadas de personagens que se mostram incapazes de transformar seus ideais em ação.
Uma época marcada por uma efervescente filosofia alemã que entra em ebulição ao apregoar que um homem “superior” tem direito de esmagar seus inferiores ao avançar para a glória. Para lá foram compositores, maestros, chefs de ópera e filarmônica, gênios russos da música e da dança que estabeleceram padrões universais, a quintessência da arte, tal como a santidade para o espírito religioso.
Enquanto Rimski-Korsakov se inspirava na música folclórica como na famosa suíte Sheerazade, Piotr Ilyich Tchaikovsky explorava mais a alma humana com sua inesgotável invenção melódica, sem czares e marchas – o único compositor russo genuinamente romântico. Entre o pique da exaltação e o abismo do desespero, alternou alegria com intensa melancolia, elevando a sensibilidade russa a uma humanidade que transpõe as barreiras políticas. O que fez dele um compositor cosmopolita, extremamente eclético, na composição de óperas – Eugen Onegin -, nos poemas sinfônicos, sua marca mais indelével – Ouverture 1812, Romeu e Julieta -, o maior nome de música para balé – Lago dos Cisnes, A Bela Adormecida, O Quebra-Nozes -, guindando a dança russa à condição de supremacia internacional, de encontro ao que o mundo sempre amou.
Embora o balé já fosse muito popular na Rússia – primeira escola em 1738, influenciada por trupes francesas -, Igor Stravinsky e Nijinsky revelaram ao mundo no início do século XX, no Champs Élysées, o Pássaro de Fogo e A Sagração da Primavera. Romperam com a escola clássica do balé e o marcialismo da época, o que aumentou a auto-estima, a leveza insustentável de ser dos russos, o orgulho da raça. Pôde se ver a esbelteza da mulher russa em todas as escalas e compassos. Provém dos galhos e ramas de árvores em movimentos, orquestrados pelos ventos, sintetizados no balé e ampliados por olhos hermafroditas, atônitos de tanta admiração.
E não são lendas se se tornam realidade. Lydia Delectorskaya, de 18 anos, chegou em Paris, em 1947, e bateu à porta de Matisse, de 78, à procura de emprego. Pousou nua, de modelo virou caso. Sua mulher descobriu e o encostou na parede. Ele pediu três dias para pensar, enquanto a experimentava de tudo quanto foi jeito, ao passo que Lydia testava a substância do caldo que iria dar. Matisse acabou por escolher a Rússia como a língua do amor, sete anos antes de sua morte.
Matisse devia saber que os pintores retratistas do século XVI ao século XX, que reproduziam as caras e bocas, os decotes e as botas, o padrão de beleza da corte, refletiam a necessidade da máquina fotográfica. Os espelhos de Versalhes que se espalharam por todas as cortes européias produzem um jogo que brinca com o infinito, ampliam o recinto e provocam a ilusão de ótica. Brincavam de perspectiva dando vazão ao impulso de tirar a imagem do foco e superpor em outro lugar, onde os cinco sentidos sequer pensaram alcançar.
Na mesma busca avant-garde, o futurista Prokofiev abandona a Rússia em 1918 e compõe obras importantes que cultuam a invenção, a velocidade e a máquina, em detrimento do sentimentalismo. De tanto experimentar a vanguarda, cansou sua beleza e desinteressou-se. Preferiu ser acessível ao grande público e retornar ao seu país, no período mais crítico dos expurgos stalinistas, quando atendeu aos ditames da estética soviética que suavizou seu estilo e o fez recuar paulatinamente à tonalidade em Pedro e o Lobo. Para compor a trilha sonora dos épicos filmes de Eisenstein, Alexandre Nevsky e Ivan, o Terrível, ídolos de Stalin, parâmetros no exercício da autoridade e pela Rússia unida jamais será vencida.
O cinema surgiu como a arte de massa e entretenimento na América dos imigrantes. No nascer da União Soviética, a expressar o novo homem que iria brotar do marxismo-leninismo. Testemunha ocular, Serguei Eisenstein nos transportou para a turbulência revolucionária comunista e gravou na nossa retina Encouraçado Potemkin, Greve e Outubro para sempre, a cinematografia para fazer pensar. Sobre o que acontece quando o povo toma o poder pelas suas próprias mãos cansado da exploração que leva à miséria. Sua importância foi a de ser o homem certo no lugar certo. A exemplo de Euclydes da Cunha no romance Os Sertões, testemunho vivo da tragédia de Canudos.
Ao resolver voltar à velha forma, Prokofiev é acusado de formalista e anti-soviético ao se preocupar com a técnica na arte. Por stalinistas que julgavam a liberdade artística uma ilusão burguesa. “Tudo o que eu faço, os idiotas não conseguem ouvir de primeira”, ele retruca e realça o paradoxo mais notável dessa cultura, o fato de ter atingido tanta magnitude e popularidade num meio hostil à criatividade individual. Desde o século XVIII, em que quase todas as grandes obras foram produzidas, as artes estiveram sujeitas à censura dos czares de todas as Rússias.
A diferença na mordaça foi a interdição da crítica aos poderes estabelecidos entre os czares e a obrigação em exaltar o regime, dentre os comunistas. Um excelente aditivo na criação de fábulas e histórias fantásticas que transformaram os cidadãos russos ou soviéticos num dos maiores consumidores de cultura do mundo, medidos em livros, cinemas, teatros, companhias de dança, casas de ópera e mercado negro de cópias-piratas.
FONTES CONSULTADAS
KNIGHT, Amy. Quem Matou Kirov?. Rio de Janeiro: Record, 2001.
LESCOT, Patrick. O Império Vermelho. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999.
CHANG, Jung. Cisnes Selvagens. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

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Antonio Carlos Gaio
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