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A BURRICE EM ESTADO DE GRAÇA

Na clara concepção do brasileiro, toda loira é bonitinha por ser burrinha e loura. Ser burro não é um fardo tão grande e dá para engolir a burrice dela, pois se burróide é o debilóide que não diz coisa com coisa, é natural que burrão seja o burro velho, teimoso que nem uma mula – só o burro sobressai nele. Empacam e não saem do lugar, se assustam com qualquer mudança de rumo nos destinos do país, caçar marajás foi o que de mais arrojado puseram fé.
Filhos do patriarcalismo e do clericalismo, sistemas totalitários machistas que concentraram extraordinários poderes em poucas mãos. Partiram a cara da sexualidade, vista como proibida, perigosa e pecaminosa, e vandalizaram a obra de arte onde se reproduz a vida, revoltados com a historinha da carochinha em torno do pecado original que perpetuou o vício de que não fomos feitos para dar substância ao prazer de amar, e sim para nos lembrar da falta de ou, quanto mais temos, mais queremos e restamos insatisfeitos, cristalizando o mistério de forma profunda e radical.
Dando seqüência ao processo de acelerada desumanização a que estamos sendo submetidos, uma intoxicação globalizada tornou tetraplégico o pensamento crítico, colocando o jovem no mesmo rodamoinho do idoso, pinça uma idéia ao léu, mas não processa nem concatena, pouco adiantam os membros, que de tanto banalizarem os gestos, robotizam. Em estado de graça, subjugados, dependentes e despersonalizados, formam uma massa de manobra numa cultura onde não existem projetos para sonhar a utopia, em que o materialismo procura banir a espiritualidade de onde viemos e para onde iremos, recorrendo ao utilitarismo de não perder tempo observando as estrelas.
Os burros constroem um sistema de vida sob a pressão da clonagem por temerem o mesmo fim da seringa descartável, só quem tiver história, berço e consistência fará jus a cópia, daí para o lixo é um passo. Se esquecem que não são bactérias, vírus ou fungos cuja imortalidade se vincula ao processo civilizatório, ignorando que somos singulares a partir do momento em que o médico dá um tapa na bunda e nos desperta para a realidade da diversidade – um é diferente de um.
Confundem espírito com ego, exatamente da mesma forma como os políticos em campanha presidencial ao abusarem da ironia e do riso às bandeiras despregadas em meio ao clima de insegurança nas ruas brasileiras que reproduz, por tudo, a Cisjordânia ocupada. Só faltam os tanques, pois que as balas já riscam o céu noturno, as rajadas de fuzis lançam os moradores ao chão longe das janelas, tiros na barriga interrompem a satisfação garantida no Big Brother. Quebraram-se as barreiras entre favela e asfalto, milícias fortemente armadas disputam a supremacia, o bonde do mal é o seu carro-chefe.
Os técnicos de futebol já se acostumaram a serem chamados de burros à medida que se aproxima a Copa do Mundo, onde se renovam os valores fascistas de exaltação à pátria, como atacar, defender, estratégia e capitão. O viking que nos dirige adicionou o estilo Scolari à ideologia sob pretexto de formar um grupo fechado, em suas mãos, que caracterize uma família sem lugar para estrelas que rachem a unidade. Aos torcedores resta embarcar nessa nau e ter o mesmo destino dos fiéis de Jim Jones ou elevá-lo à condição de guru em caso de sucesso. Ou se alienar do futebol como a classe dirigente que não vai para o Paraíso, o paraíso é aqui.
A mídia a tudo testemunha encerrada em seu ceticismo, perdeu sua capacidade de emoção nos anos pós-Collor, fiada nas fumaças do primeiro mundo. Só se ajeitam melhor na poltrona para assistir a reedição de cenas do filme “Viridiana” na fazenda do presidente, chocados com a indigência mental do MST, que dançaram, beberam e comeram à farta, às nossas custas, e enxovalharam os objetivos justos de um movimento político famoso pela arregimentação e organização informal.
Perder a capacidade de indignação é o maior sintoma de anestesiamento, mesmo sob os fluidos de Semana Santa em Fernando de Noronha. Passaram em branco as reflexões do presidente de que trabalhar, só no estrangeiro, “no Brasil, eu descanso”.
Brincadeira à parte, que se recorra aos militares, ao menos descobriram em sua ditadura que com uma casta só não se faz omelete. Dependendo do gosto, há quem prefira “quando eu ponho um peixe no meu prato, eu não vou perguntar se ele quer ser comido ou não”.
Burro é o que julga ter uma solução pro Brasil.

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Antonio Carlos Gaio
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