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RELICÁRIO DO AMOR

(Em coautoria com Beatriz Salles)

Bela, mas ela não sofria nada. Simplesmente porque não carregava dentro de si um coração. Tripudiava dos que se apaixonavam por ela. Divertia-se, satisfazia-se, jogava fora.
Até o dia em que encontrou Antônio, aquele que amava muito e sempre. Foi quando brotou um coração dentro de seu peito. E tudo mudou.
Ele guardava estrelas no porão de sua casa para iluminar a própria vida quando os tempos difíceis iam ficando insuportáveis, acostumando-se a cultivar o sofrimento, a tristeza e o vazio.
Gostava de se manter na penumbra, remoendo dores antigas, velhos desapontamentos. Sofria – e se sentia glorioso assim. Só que, às vezes, o sofrimento pesava e a escuridão começava a lhe meter medo. Era quando ele descia ao porão para brincar com as estrelas.
Vivera grandes amores. Exagerados, intensos, algumas vezes sombrios. Um deles, tão imenso que fora mais do que poderia suportar. Por isso, trancara seu afeto. Escolhera congelar aquele coração que tanto pulsava. Apenas quando havia luar tirava as travas do coração para cobrir-se de esperança.
O que ela mais temia: amaram-se muito até o dia em que ele se cansou e partiu em busca de outros encantamentos. Ela foi murchando, perdendo coragem e vontade.
Quando ela nascera para a riqueza e o poder de fazer de sua vida o que bem entendesse, de entregar seu coração – se é que o possuía – a quem lhe interessasse. Mas a sensação de que ele lhe roubara o coração ficara tão clara que ela preferia ser cega – como a vizinha. Quisera furar seus próprios olhos, tão verdes, para não enxergar tanto negrume; para não sentir tanta solidão.
Ela que nunca tivera medo de descartar ou ignorar o que não lhe acalentava a alma. Tampouco fazia questão de ser aceita.
Contudo, Antônio era um homem que amava. Muito e sempre. Exageradamente, absolutamente, irracionalmente. Acontece que ele vivia o amor certo pela pessoa errada. Quase sempre, depois de terminar uma relação, Antônio só guardava uma boa recordação da paixão e a lembrança de um sofrimento cruel no desfecho, porém de curta duração. Quando o sentimento avassalador terminava, parecia que o mundo ia acabar. Não acabava – e ele sobrevivia para buscar novo amor.
No entanto, houve um amor que se tornou eterno no coração de Antônio e ele o guardava como num relicário, por ser intocável, perene, imutável, talvez impossível. Prosseguiu em sua vida, benzendo-se todo santo dia diante de seu relicário de amor, o que, mesmo assim, não o impedia de suspirar por novas paixões – sua utopia.
Belo dia, Antônio recebeu uma carta. Não abriu o envelope com voracidade. Ainda mais que, ao reconhecer a letra, preferiu imaginar o que estaria escrito. Ali dentro, as palavras que sempre almejou ouvir. Não só de seu amor relicário, mas de todas as suas tentativas de amar de verdade.
Peixes estranhos. Ela não sabe explicar por que fora a única a aprender aquela técnica meticulosa de arrancar os olhos dos tais bichos.
Lá estava ela, soltando mais um olho, com o seu próprio olhar perdido vagando pelo salão do restaurante, quando parou.
Sentada, sozinha numa mesa, lá estava ela, a outra. Ou a outra seria ela própria? Não importa. A mulher lá estava com ar soberano e tranquilo de quem tem uma existência estruturada, onde tudo funciona como deve ser. Plácida. Foi essa a palavra que lhe veio à mente. Aquela era uma mulher dona de seu destino – e quem sabe do dele também.
De repente, lá estava debruçada sobre a outra, lâmina firme nas mãos, retirando meticulosamente – como deve ser – o olho que restava no rosto tão plácido – e lívido. Deixando todos ao redor pensando. Só ela sabia o quanto não cabia de felicidade. Quão grande era a incompletude que infernizava sua existência.
Lembrava até hoje, com nitidez surpreendente, a primeira vez que o vira. Alguma coisa fez com que tudo, absolutamente tudo, se tornasse diferente. As cores, os sons, as formas, a vida ganhava um novo significado. Sua sorte estaria selada. Poderia ter sido uma privilegiada e formarem um casal quase perfeito. Tão perfeito que daria medo.
Todavia, ela conviveria com a eterna sensação de que ele não era totalmente dela. E ela queria aquele homem que escolhera completamente seu, aí incluídos alma, coração, corpo, pensamento. Mulher nenhuma abre mão desse direito natural em se tratando de um grande amor, ou então é melhor transformá-lo em relicário do amor.

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Antonio Carlos Gaio
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