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DESAFIANDO DEUS

Murilo sempre fez pouco caso de valores religiosos, notadamente o catolicismo, que perdera o seu rumo com o fausto do aparato papal, a Inquisição, a venda das indulgências e abraçada à tradição, família e propriedade. Desde jovem, sempre tentou reescrever sua história, mas nunca foi muito além, apesar de seu tom crítico e azedo para com tudo, a não depositar fé em nada. Formou mais de uma família, teve filhos, mas nunca acreditou em Deus por culpá-Lo pelo legado desse mundo hipócrita, miserável, injusto e superpovoado de famintos, no qual o homem em suas infindáveis versões digladia com seus assemelhados.
Se Deus fosse essa perfeição toda, diria Murilo, não sentiria um vazio existencial e angústia que o consomem desde que se tornou adulto aos 14 anos de idade, quando seu pai preterira sua mãe por outra mulher, saindo de casa para compor outro relacionamento, o que provocou a perda do controle em sua mãe, tendo que ser internada numa clínica de doentes mentais.
Parecia a Murilo que veio ao mundo enfiado numa camisa de força, sem poder, livre, decidir seu destino e para onde ir. Em razão da vida não lhe apresentar respostas à altura de seus dilemas. A ironia e o sarcasmo lhe restaram como armas para atirar nos que ululam em defesa da fé cega e delirante, por não se valerem da lógica e da racionalidade, atributos que cultiva à larga com muito orgulho.
Nem mesmo cogitou do espiritismo, cuja transcendência para um outro Plano o obrigaria a se remeter para algo bem mais significativo do que um simples nada. Pelo fato da consciência extraterrena, após vencida a validade de nossa existência, trazer embutida uma verdade de poder ameaçador. Ou, ao menos, uma possibilidade que atemoriza a todos, dentre crentes e ateus, indistintamente: nossos atos serão revistos e omissões, avaliadas.
E se você está a um passo do desencarne, seja pela idade avançada que o aproxima do estágio final ou pelo estado de saúde que se deteriora a olhos vistos, não há como continuar brincando com a realidade e desmerecendo as inúmeras incursões religiosas ou filosóficas já realizadas pela Humanidade para deslindar o enigma da vida. Por isso, Murilo não sente mais vontade de sair de casa e pouco fôlego lhe resta. Atribuir ao vício do fumo é página virada. Seus entes queridos não sabem como ainda resiste.
É por ainda se julgar capaz de enfrentar Deus, dessa vez em silêncio. Mas transparecendo desânimo e acabrunhamento, por não desconhecer que só haverá um que irá morrer, fato esse irreversível em que não pode interferir, contestar, nem muito menos retardar. E ser derrotado numa batalha fictícia criada em sua mente. Fora a possibilidade desse mesmo Deus se encontrar à sua espera finda a travessia. Não dando mais para julgar todo o contexto religioso como uma inutilidade.
Pois se Deus ainda está lhe concedendo tempo para refletir e tomar outro rumo! Claro que não de se ver projetado num buraco sem fundo ou lugar insondável por não ter dado um passo à frente, pois Deus é tolerante e compreende até onde vai o seu drama hamletiano de crer ou não crer.
Por que, então, não reconhecer, digamos, metade do erro? Uma fração que seja! Se isso é uma fonte de agonia e sofrimento que corrói seu coração. Desconhecendo que levar esse estado de espírito para o outro plano é pernicioso para a sua adaptação em outra vida mais verdadeira. Representa sequelas assemelhadas aos que não se entregaram a duras provas que deviam cunhar sua evolução espiritual. Mantendo-se rígido e inerte, pouco flexível apesar de sua mente brilhante e lógica, a significar um brutal desperdício de energia.
Murilo tem noção de que jogou fora sinais expressivos de vitalidade por onde crescer, mas agora é tarde para reconhecer seu apego à ociosidade induzido pela constante falta de motivação, se nem sequer abre a boca para denunciar o descalabro a que chegou. Enfiou-se numa disputa absurda, ele que se dizia não competitivo, demostrando, porém, não deter meios nem dispor de instrumental para encarar um desafio dessa monta e minorar o tamanho de seu fracasso.
Enquanto Deus placidamente o observa, Murilo está paralisado. Quem tem que se mexer é Murilo, o quanto antes. Pois frequentemente existe alguma chance a nos rondar que antecede o suspiro final. Só seremos levados daqui, quando e como, por razões que escapam ao nosso conhecimento material e sensorial, que ainda não alcança outras dimensões.
Beco sem saída para Murilo, cujo nome significa muralha, defesa, se proteger, ou terminar emparedado. Ao não se identificar com seu espírito, não vislumbrou sua alma. Por ter sempre se recusado a enfrentar as agruras de sua alma, a conhecer a si mesmo, negando a se aprofundar no negrume de seu inconsciente e interagir sua problemática com quem gozasse de sua confiança. Mas como? Se abrir o seu coração era o seu principal problema.

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Antonio Carlos Gaio
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