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ENFARTE

Antônio Maria compunha canções no gênero dor-de-cotovelo. Apaixonado pela boemia, morreu de enfarte em retaliação ao médico que lhe tirou tudo o que amava: costela e feijoada. Cardisplicente, desdenhava o próprio coração ao brincar em suas músicas com o “ninguém me ama”. Ele desfralda a bandeira da rejeição em “ninguém me quer, ninguém me chama de meu amor, a vida passa, e eu sem ninguém”. Ele descrê de quem se aproxima e professa a fracassomania em “e quem me abraça não me quer bem, vim pela noite tão longa, de fracasso em fracasso, e hoje descrente de tudo me resta o cansaço”, e prevê seu fim, “cansaço da vida, cansaço de mim, velhice chegando e eu chegando ao fim”.
Insistem que Antônio Maria não teve enfarte causado por um mal amar. Entendem que as letras de músicas não necessariamente refletem o que passa pela glote de quem bebe e compõe. Como se o Chico Buarque não entendesse o que se passa na alma das mulheres. Falasse apenas pelos seus olhos argutos. Como se, ao entender, tivéssemos a obrigação de alcançar tudo que almejamos. Como se a poesia de João Cabral de Mello Neto não espancasse o lirismo com sua beleza contundente que nega o espírito. Como se o gênio de Machado de Assis tivesse que superar os preconceitos de sua época, fácil falar quem já nasceu livre de amarras, hoje.
Hoje? Paulo Francis foi um dos companheiros da Ultima Hora, dos gloriosos tempos de Samuel Wainer e Antônio Maria. Como crítico de teatro chegou a ator criando uma mística completamente original, personal, despropositada. Exasperou seus companheiros do Pasquim quando endireitou, tomou o rumo de New York, cansou-se de ser pobre, valorizou sua mercadoria e tornou-se o rei dos jornalistas brasileiros ao se conectar com Manhattan. Nunca se preocupou em ter se transformado num Fausto, seu raro talento o fazia cintilar, ao navegar por sobre as mais variadas matérias: economia, ideologia, filosofia, pintura, literatura, cinema, e analisando as tendências culinárias em espreguiçadeiras de grandes hotéis. Os barões da inteligência lamentam o desaparecimento precoce do cinismo farsesco que não deu bola para a advertência do coração nas letras de Maria, “nunca mais vou fazer, o que o meu coração mandar, o coração fala muito, e não sabe ajudar”, na Canção da Volta, “eu fiz mal em fugir, eu fiz mal em sair, e errei em dizer, que não voltava mais, nunca mais, hoje eu volto vencida, meu lugar é aqui, faz de conta que eu não saí”.
Os seres humanos não são incompetentes ou estúpidos por natureza. Muitas vezes, estão imbuídos do melhor espírito de acertar. Pressionados pela necessidade anarco-libertária de quererem dizer o que pensam e pela certeza de não terem sido ouvidos. O enfartado não quer aguardar o processo demorado e cansativo da melhoria das relações humanas, tão cheio de obstáculos que o sujeitam a explodir em imprecações, e a raiva não digere. Inevitável, portanto, o mau hálito na boca que já engoliu um número de sapos suficientes. E é mais um mestre que se vai.
Chavões do gênero “nunca mais vou confiar nas mulheres!”, “os homens não prestam”, “não presto, faço tudo errado”, “não agüento ver tanta burrice”, configuram o peso do passado influindo no presente decorrente de crenças, hábitos e decisões irem se confundindo a ponto de não querer largar o vício do cigarro entre os dedos e a inalação da deliciosa fumaça. Não abrir mão do inofensivo chope, das talagadas de uísque e do bombom guardado na gaveta. E ainda por cima o exercício diário e contínuo que cansa pela sua constância – mas alivia o peso de uma existência paquidérmica.
Morrem em vida não por serem enfartados, mas por se deixarem encerrar numa redoma de vidro, se isolando como Greta Garbo na floresta de concreto em que vivemos. Positivamente, precisam de um cachorro-guia. Como o que salvou uma família de fazendeiros do ataque de uma onça em Mirassol. Os latidos alertaram a dona-de-casa, que viu a onça de grande porte perseguindo o cachorro. Pegou o filho de 5 anos, correu e fechou a porta no focinho do cão, para que a onça não viesse atrás.
A onça devorou o simpático e corajoso vira-lata Freud.

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Antonio Carlos Gaio
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