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ÍNDOLE FERINA

Em meio ao cipoal de violência que banaliza a crueldade com seres sofridos que acordam para competir e diminuir as diferenças que alargam durante o pesadelo, a psicanalista Simone Sotto Mayor nos sinaliza uma violência mais sutil, mas nem por isso menos peçonhenta. Trata-se dos pervertidos que consomem anos desqualificando cônjuges, filhos e pais, parentela e amigos, seja em que ordem for, colocando em dúvida sua bagagem, grau de desembaraço, capacidade de análise com isenção, ou simplesmente atalhando seu ímpeto em decidir: “você não consegue fazer nada sozinha”, “és um trapalhão”, “você nem parece meu filho”, “até que enfim você se lembrou que eu existo”, “você vai continuar calada e não me dizer nada?”, “você é mesmo muito complicado”, “você banaliza o amor com essa história de prazer”, “você está sempre me enrolando”.
Todas essas pérolas não chegam a provocar a morte física, salvo eventuais suicídios, mas certo é a corrosão moral, o abalo emocional e o constrangimento social, abuso esse equivalente ao estupro. No capítulo da criminologia moral, encabeça o delito os atentados terroristas à sua auto-estima e crença em si próprio para desestimulá-lo de a felicidade bater à sua porta e anunciar um horizonte sadio, a salvo de meliantes que só sabem se relacionar deixando sua marca no coldre: o despudorado egocentrismo.
Uma ave de rapina de olho no que você possui, no tens o que ele não tem, sobretudo o prazer de viver.
O agressor conhece bem seu espírito doador e a vitalidade a serviço da colaboração. Materialista, o classificaria de masoquista, à mercê de que lhe tirem proveito, sua vida ingrata carece de maiores cuidados, há que bolinar o coração mole de quem precisa provar sua força e valor, num desafio quase que pastoral, de ajudar os outros a mudarem e ampliarem sua perspectiva existencial.
Quando desmascarado, aí é que o depravado demonstra sua verdadeira face e a violência se explicita na implacável missão de destruir seu eleito a qualquer preço, apenas por ter se atrevido em abandoná-lo. É de meter medo, pois não experimenta o abjeto sentimento de culpa, tem dó de quem sente compaixão e se desvincula de todo e qualquer compromisso com sua história oficial para atacar em legítima defesa. É o dia da vingança.
A vítima foi Seu Lázaro, cuja bondade, civilidade e educação era reconhecida por todos os condôminos de prédio luxuoso à beira-mar, não descurando de obsequiar com salamaleques quaisquer fossem os vizinhos, não distinguindo inclusive a doméstica Serafina, paraibana arretada e atarracada, que causava irritação nos moradores por fazer questão de só se utilizar do elevador social, sendo ela portadora de lúpus – mal disfarçando uma discriminação no único país do mundo que segrega elevadores e arrota esperteza na coexistência.
Casada há mais de 30 anos, Dona Mercedes não se segurava sobre as tamancas de tanto desgosto com as pessoas que a cercavam, notadamente Lázaro que não a preenchia na dosagem que satisfaz, espargindo seus maus humores para a plebe que a tudo assistia e nada falava.
Até o dia em que o seu apartamento fora escolhido pelos ladrões enquanto ela tomava banho e cantava no chuveiro. Rendido, Lázaro bateu à porta, avisando-lhe do assalto. Chance igual a essa só na próxima encarnação, fora a felicidade que batera à sua porta. Desatou a gritar “polícia, ladrão, socorro” e detonou o tiro que estourou os miolos do infeliz do marido.
Evidentemente que esse Lázaro tão cedo não irá ressuscitar, ainda mais que sua amante, a pobre Helena, não se cansa de prestar vigília em frente a seu prédio chorando a sua morte. Um brutal desaparecimento que nem ao menos lhe permitiu entrar em sua casa e agarrar-se às suas calças preferidas, que fazia questão de passá-las e deixá-las no vinco.
Com uma mão na frente e outra atrás, Helena apenas herdou as memórias do alívio que proporcionou às chagas do malfadado casamento de Lázaro, em compensação, Dona Mercedes reina agora absoluta. Se consolo serve, Lázaro finalmente encontrou seu merecido repouso.

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Antonio Carlos Gaio
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