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O DEGENERADO

O degenerado anda pelas praias sob o pino do sol escaldante que parte o dia ao meio, espiando o vaivém da bola na rede de vôlei. Cospe constantemente a gosma de sua essência, desconsolado por não poder mais arrebentar o adversário através de uma cortada que amarrotasse a sua cara.
Sua verdadeira praia era a área de inteligência das Forças Armadas, se não fosse a lata de goiaba em calda com que saciava a fome assassina. Com a mesma afoiteza, puxou o pino da granada em um exercício de guerra e perdeu a mão. Pensava na morte da bezerra, nostálgico de ditaduras, para caçar políticos corruptos que maculam a brasilidade do país e estancar o corrimento da vagina da Pátria-mãe, por onde vazam valores morais que constroem nossa identidade.
Na categoria de inválido, cassaram-lhe a voz de comando, transformando em cinzas todos os atributos de poder, sem o que não vale a pena viver. Desmoralizado, resolveu enveredar pelo mundo sadomasoquista, admitindo a contragosto que o prazer extraído do exercício de sua moral e autoridade perdeu o leme. Deixou o barco correr, pois nunca foi macho sequer para encarar sua mãe, que o mantinha no cabresto.
O depravado só atira pelas costas. Infunde temor pelo seu pensamento frio e calculista, torturando mentes necessitadas de abrir-se para alguém e expor os sentimentos. Atrai anjos em pleno processo de abastardamento, que se aproximam sorrateiramente reclamando de não terem sido tiradas para dançar, ao apagar das luzes da noitada. Que reacendem o seu desejo babando o contorno de sua boca, sem usar a língua, desprendendo um travo de virgindade na saliva.
Natural redobrar a lista de exigências ao encargo da mulher. Sem esboçar reação e interagir, o gozo não pode ser alcançado enquanto as messalinas não cuspirem na sua cara, esbofetearem-no e o arranharem até a carne viva.
Exploram-nas, despudoradamente, por elas não saberem dizer não e jamais arredarem do gênero de vida que escolheram, avessas a casamentos com papéis definidos. Filhos, se vierem, terão de se encaixar no hospício em construção. Infligem maus-tratos a quem ousar moldá-los segundo suas conveniências.
Constam do seu seleto cardápio filmes de perseguição implacável, tiro ao alvo, músicas de dor-de-cotovelo e sexo pelas manhãs, quando irrompe a ereção que afaga o ego de qualquer homem. Tal como a bolsa que contém o testículo, escroto é o ser humano que despreza gestos de generosidade e entrega incondicional. Preferem o voyeurismo de espiar casais com binóculo da janela do apartamento, transfigurados no comer o parceiro, a observar a candura do anjo lavando a louça e cuecas sujas.
Mantêm oculto o sonho de consumo: travestis. Também, como admitir atração por um sexo que não é frágil? Se, à menor provocação, não se decidem entre surrar ou cobri-los de beijos num abraço de tamanduá. Além do que não cabe brincar com coisa séria e cair na gandaia. Nem se enredar na estupefação de, em sendo homens, como conseguem ser mais mulheres do que as próprias?
Mas anjos também sentem dor na coluna, com o tempo as asas começam a pesar. Transformam seu cabelo de mãe-de-santo em capacetes no estilo hominídeo. Se cansam do papel de atoladas e lesas. Resolvem se fingir de mortas, desaparecendo pé ante pé. O degenerado custa a dar o braço a torcer, a sensação é de condenado à morte e o anjo a última graça concedida. Para fazer o bem e soprar as ardências das feridas que não se cicatrizam. Mesmo à mercê de seu prazer, não o satisfazia, face à descomunal fome de querer submetê-la segundo seu arbítrio. Para provar que ela é sua e de mais ninguém.
Dá início à ronda, urdida às escondidas dos amigos, para que se preserve a integridade de seu orgulho. Flagra mulheres na dança da noite, anjos de caráter libertino. Nos braços de qualquer um que levanta a dama, com o joelho enfiado por entre as pernas, e descobre recantos mais profundos que outros ainda não aportaram.
Troveja a ária de uma ópera que lastima a traição e exige respeito com sua esposa, há que preservar a integridade da família. Santo Antonio, misericordioso, devolve-lhe a mão mutilada, em caráter provisório, apenas para vibrar tapa-ouvidos em aproveitadores infiltrados e cortar seu rebolado. O clube da luta pede calma e sai de fininho. Para rir lá fora do último otário convertido à causa dos bons costumes.
O caminho dos fracos é se isolar em guetos, necessitados de solidariedade, a implorar clemência, arrependidos de seu trajeto sórdido. O degenerado aperta o passo ao se sentir enjaulado e dá sua notável colaboração para o câncer de pulmão, ao fumar quatro maços de cigarros por dia. Mas não se livra da mente, anestesiada por entorpecentes que lhe garantem uma sobrevida ao corpo, desde que consiga se abstrair dos pesadelos. As pálpebras não se sustentam, denunciam sua falta de apetite e o retrato vivo de vítima do holocausto existencial.
O degenerado fala sozinho. Com chapéu de Van Gogh enfiado na cabeça, se lembra do seu aniversário. O estado adiantado de visão estrábica levou-o a estacionar sobre as previsões do ano nascente que, em letras garrafais, anunciam a libertação de escravas do amor. Não mais serão forçadas a dizer sim.
– Quem elas pensam que são? Como é que podem fazer uma coisa dessas comigo?
Num quadro de insuficiência respiratória, o degenerado desmaia. Enquanto tentam reanimá-lo, clínicos, psiquiatras e enfermeiras decidem, em acalorada roda de debates, encaminhá-lo logo ao Jardim Botânico. Do exame constatou-se a mudança de forma para algo deteriorado. A passagem de um estado natural a outro, decaído. Consideraram-no definhado, tal como a lasca da árvore que se desprende do tronco. Murcha, resseca e morre.
Converteu-se em fonte de matéria orgânica. Finalmente, fez por merecer um lugar na Terra, quando, na qualidade de húmus, deu vida a plantas que nasceram e floresceram.

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Antonio Carlos Gaio
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