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UN JOUR INCROYABLE

Eu estou em Nice, no sul da França, desde 12 de abril para, daqui a 12 dias, realizar démarches com o objetivo de tentar publicar meu livro “Raízes Partidas”, traduzido para o francês. Quando já havia resolvido no Brasil não planejar encontrar em Nice meu amigo Sergio Saad, nem muito menos preveni-lo de que eu estava a caminho. Sequer andei com seu endereço no bolso nem procurei localizar sua rua a cerca de oito quarteirões de meu hotel. Até chegar o inacreditável dia 15 de abril de 2019, quando decidi bater na porta de sua casa. Por quê? Embora tenhamos nos encontrado nos últimos 25 anos quando ele ia ao Brasil algumas pouquíssimas vezes, sempre em torno de um delicioso cozido em minha residência, foi em 1983, comigo fazendo um curso de aperfeiçoamento em administração de impostos em Paris, que me dirigi a Nice para revê-lo pela primeira vez, desde que abandonou a segurança de nosso trabalho na Receita Federal nos anos 1970 e foi tentar a vida no exterior, com uma mochila nas costas. O destino não quis que nos encontrássemos, episódio esse relatado em meu livro “Lirismo e Truculência” – afastamento hoje sem nenhuma importância, abatido pela avassaladora força dos tempos. Quis brincar com o destino, justamente no dia em que sua mãe morreu faz dois anos, muito embora eu esteja a caminho de Paris para arriscar uma cartada em meu destino de escritor, a anos-luz de brincadeira. Mãe e irmãos se consideraram rejeitados quando Sergio Saad, de ancestralidade árabe, abandonou o Brasil e mudou seu destino para o sul da França, a um passo do norte da África – interpretaram como um repúdio à sua família, às suas origens naturais. Um dia depois de nosso encontro, saudado por efusivos abraços e risadas a espoucar felicidade no restaurante Gaglio, de comida niçoise, a igreja de Notre-Dame em Paris viria a pegar fogo, colocando em risco cerca de mil anos de existência. Antes de me atender pela janela no início da noite, estupefato com minha presença em frente ao seu prédio, Saad havia almoçado um inacreditável fondue com sua vizinha, em retribuição a ele tomar conta de seu negócio em eventuais ausências, aliás como ele faz com todos os amigos comerciantes de seu bairro (Vieux Nice). Logo depois, apareceu um galerista em seu apartamento para contratar uma exposição de seus quadros cujo estilo atual mescla natureza em foto com pintura abstrata. Em seguida, eis que eu surjo para fechar um dia inacreditável para quem não acredita em espiritismo e pensa esse encontro ser apenas uma mera coincidência. Uma amizade de 49 anos cheia de altos e baixos, mas sólida até por termos objetivos comuns de sermos lançados à vida através da arte, plena de percalços como se segue. Saad veio bater com os costados em Nice e se iniciar como pintor abstrato ao se apaixonar pela francesa Fanny, terem um filho e viverem juntos durante 12 anos. Permaneceu na arte abstrata até o ano 2000, sustentado, ao final, por um mecenas, quando de novo se apaixonou, dessa vez por Cathérine, cujas afinidades intelectuais e sexuais o levaram ao nirvana, não fosse o absurdo ciúme dela tornar inviável a perfeição. A despeito de, em conjunto com Cathérine, formada em Filosofia e especializada na área altamente complexa da Estética, ter registrado dados autobiográficos em sua produção artística. Contudo, mergulhou num estado tal de miserabilidade material e artística (deixou de pintar), que o obrigou a viver no seu mínimo atelier durante mais de um ano sem aquecimento, sem cozinha, sem janela e apenas tomando banho de esfregão com luvas, na falta de um chuveiro. Saiu da crise tentando ser escritor ao se aprofundar na literatura francesa no tocante à biografia de pintores, aos movimentos da pintura e às técnicas neles implícitas, escrevendo “Meandros” – uma viagem em torno de si mesmo, não publicada. Até que se definiu em 2016 por um outro estilo de pintura em paralelo com sua opção por se tornar celibatário, senão um ermitão, ao buscar paz de espírito. Truculência em nome de um ciúme exagerado e elevado nível de inteligência não combinam. Brigas e disputas conjugais, nunca mais. Para se casar com a arte.

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Antonio Carlos Gaio
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