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VENCER É HUMILHAR

A Copa do Mundo se aproxima e o novo Coliseu já está montado no Japão e na Coréia, inimigos viscerais que se unem para dar vazão ao que o torcedor mais exige, a vitória. Ou a cadeia, conforme previu Berlusconi em alusão de mau gosto aos italianos. O decantado otimismo dos brasileiros divide a nação em dois até a esperada revanche com os franceses nas quartas-de-final, quando nos juntaremos à maneira que os japoneses preparam o arroz e os esquartejaremos em mil pedaços de sushis. O saquê irá ajudar, com a graça de Buda aliado a Deus que é brasileiro, a deglutir os asterix e a seu canto de guerra un-deux-trois-zéro. De cambulhada, engolimos Felipão.
Criada em 1930 como fator de aproximação entre os homens e reconciliação de classes, a Copa do Mundo logo se transformou num espetáculo para a sociedade de massas cuja mitologia esportiva acolheu o racismo e o expôs à execração diante do talento dos negrinhos. Consolidou-se a fidelidade nacional e o fascismo deu formas definitivas ao esporte através de emblemas como uniformes, bandeiras e hinos. Rituais de guerra demarcaram o campo de ação com jargões do gênero tais como atacar, defender, tática, estratégia, capitão, máquina de fazer gols, linha Maginot de impedimento, marca fatal do pênalti, bandeirinhas, grande área, posteriormente ridicularizada como zona do agrião pelo comunista João Saldanha nos anos de chumbo da pátria de chuteiras.
O culto da força e do combate como reflexo de um país forte preparado para enfrentar qualquer inimigo foi sendo gradualmente transformado pelo reino da liberdade humana que se desenvolvia nas canchas brasileiras e nos terreiros de samba na era Vargas, mas a anarquia, seu principal inimigo, levou-nos à derrocada contra o Uruguai em 1950. O que não impediu um sopro renovado no coração do futebol canarinho, real escola de bailarinos, eméritos dribladores, malabaristas, focas amestradas, micos-de-circo, goleiros trapezistas, rei pelé, garrincha que tritura zés manés, elegantes príncipes, enciclopédias, tostões, furacões, canhotinhas de ouro, cajus, patas atômicas, capitas, formiguinhas, corrós, peitos de aço, galinhos, dinamites, falcões, nelinhos, sócrates e baixinhos, gestaram uma arte original que nem o pecado e a ilusão de tudo parecer fácil e intuitivo no circo que é a alegria do povo.
A identidade entre superioridade esportiva e autoritarismo sempre marcou o futebol desde Mussolini, Franco e Cia. – Hitler chegou atrasado – a Médici, Vidella e Cia., até ser introjetada no tecido orgânico dos esportes, perpetuando dirigentes dinásticos para facilitar a administração da gama imensa de recursos despejados por empresas, o esquema de propaganda, o aliciamento de menores comportados para que não se transformem em maradonas e facilitar o trânsito de intermediários que transformaram o negócio em prostituição, como só e acontece com galinhas de ovos de ouro.
Como se tudo isso não bastasse, ao futebol clássico do passado se opõe a lentidão, que hoje não resistiria a carrinhos e fungadas no cangote de marcadores submissos a técnicos originados em mães corujas cujo aplauso farto e fácil redundou em achincalhes provincianos, ao feitio da linha burra de impedimento. Treinadores que confrontam Deus por não tê-los obsequiado com um pingo de talento como jogador, destituídos de qualquer noção sobre a arte do gingado, do drible do elástico, do rabo-de-vaca, têm raiva de levar bola entre as canetas. Seu espectro cultural restringe-se à arte de vencer, desprezando o passado do banho de cuia de Pelé em galeses e suecos, as entortadas de Garrincha nos joões, o gol deitado de Tostão na Inglaterra, a folha-seca de Didi. E a absoluta economia de desgaste físico de Romário com graciosos toques de biquinho de chuteira e tapas na bola submissa ao craque pro fundo das redes.
A esse tipo de mentalidade que grassa no esporte só interessa a vitória, vencer ou vencer, vitória a qualquer preço nem que seja com gol de mão no último minuto, se o juiz roubou azar do adversário, vai que é tua se ganhar nos pênaltis. Só a vitória traz a glória, os louvores, o orgulho, a vaidade, atrai o puro oportunismo e a inveja de quem apostou contra.
A sensação do povo em se sentir superior até a próxima Copa, ou por um ano, uma semana que seja. E humilhar os derrotados provocando-lhes ressaca e o insinuante mal-estar que se irradia pelo lar, família e trabalho, a ponto de você nunca mais querer torcer e botar o pé nos estádios.
Uma visível evolução, quando se sabe que os astecas sacrificavam o artilheiro que encaçapava a pelota no aro ao longo de uma pugna interminável em que valia usar pés, braços, mãos, em torno de uma cabeça decapitada de algum mancebo distraído. Dar a vida pela morte era a glória.

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Antonio Carlos Gaio
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