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O SURREALISMO DO ANJO EXTERMINADOR

Luis Buñuel (1900-1983), o pai do surrealismo no cinema, estudou num colégio de jesuítas, cuja influência se faria sentir para o resto de sua vida. Com a adolescência, tornou-se anticlerical e ateu, sendo expulso do colégio em 1915. Nele sempre primaram a rebeldia e o inconformismo. Influenciado por Garcia Lorca e Salvador Dali, rodou em 1929 os curtas-metragens “Um cão andaluz” e “A idade do ouro”, cuja cena inicial de uma navalha a cortar o globo ocular provocava calafrios na plateia, o que viria a ser marcante em sua obra cinematográfica.
Premiado no Festival de Cannes por Los Olvidados (1951) e Viridiana (1961), no Festival de Veneza por Belle de Jour (1967) e alcançado o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro (1973) por O discreto charme da burguesia. O título deste último filme, juntamente com Esse obscuro objeto de desejo (1976), passaram a integrar o vernáculo de todo o mundo.
Segundo os surrealistas, a arte deve se libertar das exigências da lógica e da razão e ir além da consciência cotidiana, expressando o inconsciente e os sonhos.
O Anjo Exterminador (1962) impressiona como a criação mais surreal e libertária de Buñuel, na qual os ricos convidados de um jantar de gala não conseguem deixar a mansão, embora nada na realidade os impedisse. Não há nada físico que os impeça de sair, porém algo os faz refém de portas e grades imaginárias. Quando todas as portas estavam abertas, mas todos eram absolutamente incapazes de atravessá-las. E ali permaneceram dias e noites confinados com os anfitriões.
À medida que horas, dias e semanas vão passando, as máscaras e as convenções sociais começam a ruir, com Buñuel jogando na nossa cara toda a falsidade e podridão de cada ser humano. Tratando os empregados que os serviam como se fossem meros e insignificantes proletários. Contudo, os empregados já haviam começado a se retirar, saindo apressados, como se algo de muito ruim estivesse por acontecer e eles, que não têm nada a ver com isso, não pudessem presenciar. O único que permanece, todo o tempo, é o mordomo, numa alusão à hierarquia que essa figura exerce dentro de uma casa, pois ocupa a função de maior prestígio dentre os outros empregados, igualando-se, na visão dos servos, ao poder e à influência dos patrões.
O que Buñuel aborda nesse chocante filme é a paralisia da burguesia e de como ela deixa aflorar seus instintos mais selvagens de sobrevivência quando privada de comida, água e banho. Apresentando os mais variados vícios burgueses, como tripudiar sobre as pessoas mais humildes, a maledicência, a excentricidade, a calúnia. Em uma cena, o anfitrião lamenta o comportamento promíscuo dos convivas sem perceber que seu amigo seduz sua esposa bem na sua frente. As pessoas passam a se mostrar como realmente são, desentendimentos, acusações e disputas se tornam normais entre elas. Alguns, mais exaltados, revelam segredos íntimos, ou falam sobre a vida privada de outros, perdendo completamente a compostura, uma exigência de bons costumes da sociedade.
Buñuel desenvolve uma habilidade extrema e assustadora ao abordar uma situação limítrofe e expor seus personagens a provações que lhes eram proibidas pelo status social por eles alcançado. Ou seja, deparamo-nos com pessoas outrora distintas (ou limitadas por suas posições sociais), que, confinadas durante dias, veem extinguidos todos os seus freios morais. Nada mais importa, tudo é permitido. O adultério passa a ser às claras. As antipatias não são mais escondidas. Os desejos sexuais vêm à tona. É a aristocracia perdendo a máscara. Mostra o que há de menos civilizado entre aqueles que se julgam mais civilizados. E Buñuel tirando um sarro do nada discreto charme da burguesia.
Prevalece a linearidade na narrativa de Buñuel, não existe uma relação de causa e efeito entre os diversos pequenos acontecimentos da trama. Por exemplo, em um minuto, cinco breves cenas (com diferentes personagens) que nada têm a ver uma com a outra. Buñuel investe também em figuras de repetição de falas, de planos, de enquadramentos, que são igualmente uma forma de transgressão e subversão da narração tradicional. Outro elemento transgressor, que também contribui para o caos narrativo, é o conjunto de frases enigmáticas e, muitas vezes, sem significados explícitos, pronunciadas pelos personagens, instalando uma confusão psicológica que aumenta ainda mais a sensação de desordem e angústia.
É o surrealismo em marcha, depois de 45 anos de criação do movimento pelas mãos de André Breton, Guillaume Apollinaire e outros. No eterno desconstruir da arte para gerar mais arte.
A intimidade compulsória que convidados e anfitriões compartilhavam no confinamento parecia invadida por um apocalíptico anjo exterminador (a referência bíblica encontra-se no título), que poria fim aos seus freios internos, à sua repressão, derrubando a barreira da censura e exterminando sua força para reprimir seus impulsos. Através do fantástico e do sobrenatural, o diretor lança o seu olhar crítico e agudo sobre o comportamento do homem em sociedade, apontando o individualismo, o egoísmo, a crueldade, a fraqueza, a hipocrisia e outros monstros internos que o homem esconde atrás de sua máscara.
O crítico e cineasta francês François Truffaut achava que Buñuel se divertia desprezando as pessoas. Eu acho que nutria um profundo desprezo pela aristocracia espanhola, inserida na monarquia, na ditadura franquista, na Igreja Católica, na burguesia expelida desse meio a título de renovação. Buñuel afirmou posteriormente que gostaria de ter ido ainda mais longe com a trama e que, na época, se impôs uma censura. Segundo o diretor, se pudesse realizar o filme novamente, “deixaria os personagens presos um mês até que eles praticassem o canibalismo”.
“A moral burguesa é, para mim, uma imoralidade contra a qual há de se lutar; esta moral que se baseia em nossas instituições sociais mais injustas como o são a religião, a pátria, a família e a cultura, em suma, o que se denomina os pilares da sociedade” – palavras de Luis Buñuel.

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Antonio Carlos Gaio
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